soldados da borracha

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

A Saga dos Arigós - A História dos Soldados da Borracha


A Saga dos Arigós - A História dos Soldados da Borracha

Texto retirado da internet. 

http://www.udv.org.br/A+Saga+dos+Arogos+_+A+Historia+dos+Soldados+da+Borracha/Destaque/14/

A União do Vegetal tem sua origem social ligada aos brasileiros que migraram para trabalhar como seringueiros na Amazônia em meados do século XX

Série de reportagens de Ariadne Araújo, publicada em suplemento especial do jornal O POVO, Ceará.
A história dos 55 mil brasileiros recrutados pelo governo Getúlio Vargas para produzir, nos seringais da Amazônia, 100 mil toneladas de borracha por ano para os países Aliados durante a II Guerra Mundial.
Fugindo da seca de 1942, nordestinos se alistaram como voluntários e pelo menos 31 mil morreram, vítimas de malária e outras enfermidades, além dos problemas decorrentes da dura jornada de trabalho.
A reportagem resgata essa história e mostra onde estão hoje os sobreviventes da Saga dos Arigós, que ampliou a presença do povo nordestino na ocupação social da Amazônia.

 Editorial


Em busca dos heróis da Pátria

A história por trás da história. O cordelista de Sobral, João Amaro, 68, puxou, sem querer, a ponta de um novelo. No começo, o assunto nem era esse. O aposentado mostrava material, dezenas de folhetos de cordéis de sua autoria, para uma matéria sobre os versos fesceninos, veiculada pelo suplemento Sábado. No decorrer da entrevista, no entanto, uma surpresa: a vida de João Amaro se confundia com a de 55 mil nordestinos que formaram, durante a II Guerra Mundial, o Exército da Borracha.

Numa carta amassada, espécie de desabafo e denúncia, ele resume a quem se interessa em saber, os anos de cativeiro e sofrimento na floresta amazônica. Um sacrifício pedido pela Pátria para a vitória dos países Aliados. Para o jornal O POVO, essa era uma história que não poderia deixar de ser contada. Inquieta e apaixonada pelas boas causas, a repórter Ariadne Araújo foi até o Norte do País. Durante 14 dias, pesquisou muito e descobriu que a experiência do seu Amaro era a referência do último ciclo migratório que levou nordestinos ao Vale da Amazônia.

Ariadne visitou seringais às margens dos rios do Acre, região que concentrou boa parte desses migrantes. Encontrou o exército da borracha envelhecido, doente, em busca de uma outra dívida: a promessa do Governo Federal de reconhecê-los como heróis da Pátria. São essas histórias, perdidas entre os igarapés, nas margens de rios barrentos, balançando em palafitas, contadas sob a revolta de quem descobriu tarde demais que foi enganado, que esse suplemento vai contar.
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A guerra da borracha

 A enxada pela faca de seringa. A seca do Nordeste pela floresta Amazônica. A troca foi durante a Segunda Guerra Mundial, quando 55 mil agricultores nordestinos formaram o Exército da Borracha. Missão: salvar os países Aliados do colapso da borracha. Pelo menos 30 mil deles morreram em completo abandono.

A II Guerra Mundial, a floresta na Amazônia ou a seca no Ceará. De 1943 a 1947 esses três momentos da história se misturaram. Em Alto Santo, no Vale do Jaguaribe, leste do Estado, o plantador de feijão e arroz, Edgar Bezerra Mota, 72, fez a escolha. Há 55 anos, ele deixou a lida com a terra, a família, o lugar onde nasceu e virou seringueiro. Como ele, outros 55 mil nordestinos pegaram um navio para o Norte e mudaram, de um dia para o outro, suas vidas. Um exército - número igual ao de americanos mortos no Vietnã -, convocado às pressas pelo governo do Brasil para um esforço de guerra: a produção anual de cem mil toneladas de borracha.

Se fosse enredo de filme, poderia ter o título Sem Saída. Se fosse tema de livro, Tragédia Anunciada. Um pacto, os Acordos de Washington, assinado pelos presidentes Franklin Delano Roosevelt, dos Estados Unidos, e Getúlio Vargas, do Brasil, selou o destino do exército da borracha. Eles tinham uma importante missão nacional: salvar os países aliados do colapso na indústria bélica. Para os americanos, um quilo de borracha valia mais que um general e um batalhão juntos. Era o nervo da guerra. O problema mais urgente a ser resolvido. O produto mais crítico a ameaçar o êxito dos Aliados.

A comissão especial, formada para estudar o fornecimento e estoques de material de guerra, deu o alarme. Em 1944, cerca de 27 milhões de automóveis na América teriam que ser abandonados pela falta de pneus. Além dos carros, sairia afetada a produção de calçados, isolantes, cinturões, peças para rádio e telefones, por exemplo. O estoque armazenado daria para, no máximo, doze meses. Os planejadores militares entraram em pânico. Mas a indústria de armamento teria prioridade. Melhor o desconforto que a derrota.

O relatório final da comissão não deixou dúvidas. Se não fossem assegurados novos suprimentos, as exigências militares esgotariam o estoque - 641 mil toneladas -, antes do verão. O jeito foi partir para o sacrifício. No início, de civis americanos e, logo depois, de milhares de nordestinos brasileiros. Para reduzir o consumo de pneus, os EUA racionaram gasolina, limitaram em 56 quilômetros por hora a velocidade e em oito mil quilômetros o percurso médio anual dos carros e ainda suspenderam a produção e venda de automóveis, até segunda ordem.

A produção do aço, do cobre, do alumínio, das ligas ou da gasolina de aviação estava garantida. Havia estoque considerável à disposição das forças armadas. Mas a crise da borracha atingiu a todos os Aliados. A Inglaterra tinha apenas 100 mil toneladas de estoque. O Canadá, 50 mil. A Austrália, 20 mil. A estratégia era buscar toda a matéria-prima existente na América Latina. Pelo menos até que a borracha sintética, um antigo projeto dos EUA, fosse um sucesso e passasse a ser fabricada em escala, permitindo a comercialização. Um total de 50 novas fábricas trabalhava para isso.

Quando a guerra terminou, a produção de borracha sintética já alcançava um milhão de toneladas anuais. Mais que o volume de toda a borracha importada em um ano, antes do conflito mundial. Mas isso foi só em 1945. Ainda no auge da crise, um boletim informativo do governo brasileiro trouxe boas novas: a existência de 300 mil árvores da hévea brasiliensis, mais conhecida como seringa, espalhadas por toda a Amazônia. Era, como se diz, a ``sopa no mel''. Isso significava um potencial de 800 mil toneladas anuais, numa área de quase um milhão de milhas quadradas, incluindo o Brasil, Peru, Bolívia e Colômbia. A metade dessa produção já resolveria a crise dos Aliados.

Os técnicos que fizeram os cálculos esqueceram, no entanto, de computar alguns detalhes importantes. Um deles era a questão da distância. Na Amazônia, em meio acre de floresta, pode-se encontrar, no máximo, três ou quatro seringueiras. Outro ponto não levado em conta era a falta de mão-de-obra para reorganizar os seringais amazônicos, abandonados na década de 30, quando a extração brasileira de borracha caiu para 6 mil toneladas, ou seja, 0,2% da produção mundial. Resultado: eram grandes as chances de as coisas não caminharem tão de acordo com o que foi colocado na ponta do lápis.

Não poderia ter outro nome. A operação que aconteceu no Vale Amazônico em pleno conflito mundial passou a ser chamada de Batalha da Borracha. Os técnicos fizeram, então, novas contas. Em toda a região Amazônica, deveriam restar apenas 35 mil seringueiros, remanescentes do primeiro ciclo da borracha. Era preciso trazer, e urgente, mão-de-obra para a extração de látex suficiente para resolver a carência dos países Aliados. Em troca, o Brasil tinha a promessa de ver resolvida uma lista de pendências: 20 tanques leves, 100 tanques de porte médio, quatro metralhadoras antiaéreas e ainda US$ 200 milhões para equipamentos militares.

Com os olhos no Norte do Brasil, os Estados Unidos tinham pressa. Na base do ``custe o que custar'', o plano era o de obter o máximo de borracha em um mínimo tempo. Os americanos não se interessavam nem pelo desenvolvimento da Amazônia e nem pelo bem-estar da população, embora alardeassem isso. Enquanto eles arcavam com o ônus maior, envolvendo-se diretamente no conflito, o resto da América devia participar do esforço de guerra, no fornecimento de matérias-primas à indústria bélica e na manutenção da ordem interna, para se evitarem alterações nos compromissos políticos e econômicos assumidos.

Franklin Roosevelt queria mais que a produção de borracha do Brasil. Getúlio Vargas cedeu. Aumentou o número de tropas de manutenção nas bases aéreas do Norte e Nordeste, liberou a construção de instalações militares e navais e a permissão para que as aeronaves americanas usassem o espaço aéreo nacional. Em alguns casos, oficiais brasileiros chegaram a entregar o comando das tropas para oficiais americanos. Mas tudo isso ainda não foi suficiente.

A vida do agricultor Edgar Bezerra Mota, por exemplo, também entrou na negociação. Ele e outros milhares de nordestinos, na grande maioria adolescentes, foram colocados na mesa como trunfos do Brasil nessa política de boa vizinhança. Na barganha do toma-lá-dá-cá, a mão-de-obra, tratada pelos jornais como tropa de flagelados, era algo importante a se oferecer no sacrifício da guerra. Só no ano de 1945, esse exército recrutado aumentou o estoque de borracha natural de 93.650 para 118.715 toneladas. Uma reportagem publicada no New Chronicle, de Londres, denunciou a tragédia: 31 mil migrantes nordestinos morreram na tentativa de garantir matéria-prima para os Estados Unidos.

O deputado federal Café Filho, representante do Rio Grande do Norte, pediu a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar a situação dos trabalhadores enviados à Amazônia. A CPI da Borracha ouviu depoimentos, realizou doze sessões e foi dissolvida sem conclusão nenhuma. O que a CPI não disse em seu relatório é que, com o fim da guerra, a situação nos EUA se normalizou e os americanos já não precisavam mais do Brasil. Em conseqüência, o País também não precisava mais dos 55 mil homens que mandou para a Amazônia. Poucos conseguiram voltar para casa.

A Batalha da Borracha não deixou nada para o Brasil. Os seringais, a maioria falidos ou hipotecados, seriam, anos mais tarde, presa fácil de especuladores de terra que começaram a atuar na região. Manaus, o centro do esforço de guerra, estava arruinada e não era, nem de longe, uma sombra do luxo e deslumbramento do começo do século. Já os trabalhadores foram entregues à própria sorte. Enquanto isso, os Estados Unidos conseguiram, finalmente, sua produção de borracha sintética e a Inglaterra recuperou suas possessões e cultivos de seringueiras. O mundo voltava, aos poucos, à normalidade. A reportagem do New Chronicle resume:``Agora os mortos continuam absolutamente mortos''.

Invasões e escassez

O ataque a Pearl Harbour arrastou os Estados Unidos para a guerra contra o Japão. Mas foram as invasões japonesas na Malásia e Borneo - sob o domínio inglês -, que trouxeram o pânico aos estrategistas americanos. Isso significava um corte brusco em 97% de suas fontes de suprimentos. Na cabeça da lista: a borracha. O mercado ocidental da goma elástica estava, então, fechado para os Aliados.

Antes disso acontecer, no entanto, os EUA tinham feito alguns esforços para evitar um possível desastre. Alarmados pela extensão e intensidade do conflito no Pacífico e temendo um colapso civil e militar, os EUA intensificaram o seu programa de procura e compra da borracha. A iniciativa aumentou o estoque, principalmente através de permutas com a Inglaterra. O negócio era trocar borracha crua por produtos agrícolas, como algodão. O embaixador inglês Lord Halifax tinha motivos suficientes para satisfazer as necessidades de borracha da indústria americana.

Primeiro a Inglaterra precisava de divisas para enfrentar a guerra. Em segundo lugar, os ingleses tentavam evitar com isto que os americanos montassem uma poderosa indústria de borracha sintética. Também estava em jogo um possível apoio à causa anglo-francesa. Mas, apenas três meses após o ataque a Pearl Harbour - Porto das Pérolas -, no Hawai, os EUA proibiam a venda de pneus. Fora da ocupação japonesa, os Aliados ainda tinham como alternativas a Índia, Ceilão, Libéria, África e América Latina.

Confusão e tumulto. As repartições do governo americano começaram a se abarrotar de sugestões de especialistas. Eram dezenas de planos e projetos para procura e produção de borracha. Foi em meio ao desespero como esse que os americanos se depararam com a Amazônia, de longe o maior depósito de borracha natural. A Rubber Development Corporation assumiu, então, o comando da orientação e organização de planos do governo americano para obtenção do látex amazônico. E a história do Exército da Borracha começa a ser desenhada. (AA)

Como os ingleses roubaram o ouro branco

De simples droga do sertão a ouro branco. A exploração da borracha vegetal na América remonta aos tempos pré-colombianos. Para os índios que habitavam o golfo do México, ela era moeda e pagamento de tributos aos Astecas. As expedições científicas nos séculos XVIII e XIX, no Vale Amazônico, voltavam fascinadas. No começo do século XVI, a descoberta já não era uma simples notícia, mas sim uma possibilidade comercial em meio a uma Europa ávida por novas oportunidades econômicas.

O inventor americano Charles Goodyear resolveu o problema em 1839: o ponto ideal de elasticidade e impermeabilidade. Ou melhor, a vulcanização. O processo tornava a borracha resistente às variações de temperatura e abria os caminhos para a indústria do processamento da borracha. De um lado a outro do Atlântico surgiram correias, mangueiras, calçados, pisos, artigos esportivos, vestimentas impermeáveis, equipamentos cirúrgicos e elásticos.

A invenção do pneumático (1888), o aparecimento do automóvel (1895) e a massificação da bicicleta como veículo de transporte causaram o surto da borracha nos mercados mundiais. De todas as áreas onde se operava a extração do látex, a Amazônia era a que oferecia maior segurança e amplas possibilidades: quantidade quase ilimitada de seringueiras e gomais e boa produtividade das árvores. Mas, no final do século passado, o Norte do Brasil era ainda a região de cacauais, cafezais, dos engenhos, das lavouras e do pastoreio.

Tarde demais para tanta paz. Começava a desenfreada corrida rumo aos seringais. A Amazônia transforma-se na região das héveas, do ouro negro, dos pioneiros, dos seringueiros, dos patrões, dos aviadores. No início, na chamada fase cabocla, os seringais foram explorados por mão-de-obra local: mestiços ou tapuios. O boom da borracha, no entanto, chamou a atenção de trabalhadores do outro lado País. O historiador Celso Furtado estima em 500 mil o número de nordestinos que se retiraram para a Amazônia nesse primeiro ciclo da borracha.

Os seringalistas ou patrões sabiam onde procurar operários. Em Fortaleza, Recife e Natal, eles encontravam desempregados e refugiados, fugitivos da seca e da miséria no sertão. A arregimentação tinha uma propaganda forte. Trazia a ilusão de enriquecimento rápido, de trabalho autônomo, de liberdade, do El Dorado. De 1850 a 1900 a população do Vale Amazônico aumentou dez vezes. No livro História Econômica do Ceará, Raimundo Girão calcula: das 300.902 pessoas que emigraram do Ceará, no período de 1869 até o final do século, 225.526 se destinaram para a Amazônia.

Era difícil imaginar que aquela euforia fosse passageira. O Brasil dominava o mercado mundial e tinha o maior reservatório de seringueiras do Planeta. A economia da borracha se expandiu entre 1880 e 1920. Em 1913, por exemplo, a borracha responde por 20% da exportação total do País. A riqueza da região parecia inesgotável. Mas a prosperidade do Vale Amazônico estava com seus dias contados. Na Inglaterra, um plano bem articulado estava sendo traçado. A idéia era roubar o ouro branco do Brasil.

O aventureiro inglês Henry Wickham fez o trabalho sujo ``nas barbas'' do governo brasileiro. Ele chegou à Amazônia em 1876 como um excêntrico colecionador de orquídeas, à procura de tubérculos raros. Às margens do Tapajós, ele iniciou suas experiências. Plantou uma grande quantidade de seringueiras e, logo logo, produziu as cobiçadas sementes. Um navio de Sua Majestade Britânica, o Amazonas, levou o contrabando como se fossem preciosos pacotes de orquídeas. Na verdade, eram milhares de sementes da árvore da borracha a caminho das estufas londrinas e depois para o Ceilão. Estava preparada a surpresa.

Fraude ou contrabando? Enquanto o Brasil ainda comentava o farto banquete oferecido em Belém aos tripulantes do navio de Sua Majestade a Rainha da Inglaterra, as sementes roubadas davam início ao cultivo de seringueiras nas colônias britânicas do Oriente. Sem tecnologia, com um sistema arcaico na extração do látex, baixa produtividade e elevados custos, o sistema extrativista da Amazônia não resistiu. A concorrência era organizada, trabalhava com pesquisa e cultivo racional. Estava quebrado o monopólio brasileiro.

Quebradeira geral. Falências e concordatas. Seringais desativados. Esse foi o calamitoso ano de 1913. Sem esperanças, Epitácio Pessoa resolve fornecer passagens aos nordestinos para que regressem às suas regiões. Uma corrente migratória em sentido contrário. Trinta anos depois, em plena Segunda Guerra Mundial, o sonho do El Dorado volta a mexer com a cabeça dos brasileiros. Os nordestinos já sabem o caminho. É o mesmo que levou e trouxe avós e pais. (AA)


Eles fizeram esta história

Esperança de voltar - A venda de picolés é o complemento da aposentadoria de João Vitorino Bezerra, 65. Quando chegou à Amazônia, foi trabalhar em um seringal próximo aos índios urubus-araras. ``Chorei muito de saudade da minha terra, no Ceará. O meu sonho, estar perto de meus pais na hora da morte deles, eu não realizei. Mas continuo sonhando em voltar à minha terra''. Na festa do Soldado da Borracha, João Vitorino não perdeu a chance: levou o carrinho de picolé. Dois coelhos com uma cajadada: rever amigos e ganhar uns trocados para sustentar os netos.

Medo da polícia - Benedito Ferreira, 84, nasceu em Riacho do Sangue, na região do Jaguaribe, no Ceará. Só a oração de Santa Luzia era garantia de proteção contra os perigos da selva ou mau patrão. Mesmo depois de tanto tempo, o aposentado ainda tem um medo da época de seringueiro: que a polícia venha prendê-lo por uma briga que acabou mal em meio à floresta. O rival foi ferido de morte? Ele não sabe, mas, por via das dúvidas, é melhor prevenir. Além de um problema na perna que o impede de andar direito, ele traz outra herança: o castelhano. ``Aprendi a falar espanhol com os bolivianos''.

Amuleto da sorte - Uma bola de borracha. Fui tudo o que sobrou da lembrança da época de seringueiro. Filho de paraibano, José Correa dos Santos, 58, conta que tudo era difícil para o soldado da borracha. Em Cruzeiro do Sul, município do Acre, próximo à fronteira com o Peru, ele hoje é proprietário de um pequeno comércio de secos e molhados. O dinheiro para montar o próprio negócio ele conseguiu porque deixou a vida de seringueiro e foi ``regatear'', ou melhor, comerciar pelos rios do Acre. Hoje, um quilo de borracha pendurado por um cordão funciona como um amuleto de sorte na entrada do comércio. ``Só venci porque deixei a vida de soldado da borracha''.

PERCURSO DA BORRACHA PELO MUNDO

Acordos de Washington - Sem estoques de borracha e diante de um colapso da principal matéria-prima para a indústria bélica, os Estados Unidos assinaram os Acordos de Washington com o Brasil. O objetivo era extrair da Amazônia, o maior reservatório de látex do Planeta, 100 mil toneladas de borracha por ano. Por causa disso, um plano de atração de mão-de-obra foi colocado em ação. Cerca de 55 mil nordestinos foram levados pelo Governo Federal para trabalhar na floresta.

Monopólio - Em 1876, a Inglaterra iniciou o cultivo de seringueiras em bases racionais nas colônias do Oriente, como a Malásia. As sementes, roubadas da Amazônia por um aventureiro, Henry Wickman, foram levadas para estufas inglesas e, anos depois, deram origem a um novo mercado fornecedor de borracha. O Brasil perdia o monopólio para a Inglaterra.

El Dorado - A partir de 1943, a Amazônia viveu um novo El Dorado. A corrida em busca do ouro branco que, no século passado, já havia provocado um processo migratório do Nordeste para o Norte do País, voltou a acontecer. Segundo um boletim divulgado pelo Governo Federal, a extração da metade da borracha disponível na Amazônia já resolveria a crise da borracha em que se achavam os Aliados.

Alternativa - Os ingleses temiam que os americanos montassem uma poderosa indústria de borracha sintética. Três meses após o ataque a Pearl Harbour, no Hawai, os EUA já proibiam a venda de pneus. O mercado alternativo para compra da matéria prima pelos Aliados era formado pela Índia, Ceilão, Libéria, África e América Latina

Cultivo racional - Na Malásia, as sementes de seringueiras, roubadas do Brasil, foram cultivadas de forma racional. Nas plantações do Oriente, ao contrário do Brasil, a distância entre as árvores era a mínima necessária, sob orientação de pesquisas. Na Amazônia, os seringueiros tinham que se embrenhar na floresta à procura do látex. Isso significava perda de tempo e de produção. Principalmente por causa disso, a seringa da Malásia conquistou o mercado internacional.

A origem da minha viagem
A esta santa terra
É porque em quarenta e três
O Mundo estava em guerra
Foi a causa de tudo
Que nesta História se encerra

Raimundo de Oliveira (RO), cordelista e soldado da borracha

Eu já ia para a guerra
Já estava sorteado
Mas havendo necessidade
Para a borracha fui tirado.
O bem da Pátria também era
Um bom serviço prestado.

(RO)
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Seca & migração

Dinheiro fácil. A promessa atraiu milhares de nordestinos para o Exército da Borracha. No trabalho de arregimentação de voluntários, o Governo Federal pediu ajuda a padres, médicos, enfermeiras. Nos alojamentos, construídos para receber os soldados, problemas com a comida, surtos e motins.

Uma calça de mescla azul, uma blusa de morim branca, um chapéu de palha, um par de alparcatas de rabicho, uma caneca de flandre, um prato fundo, um talher, uma rede e uma carteira de cigarros Colomy. No lugar da mala, um saco de estopa. O enxoval do soldado da borracha era o presente do presidente Getúlio Vargas aos voluntários do Inferno Verde, como ficou conhecida a Amazônia posteriormente. Melhor que isso, só a promessa de dinheiro fácil estampada em cartazes de propaganda do Governo Federal. Difícil resistir. Principalmente para quem vive no Sertão em um ano de muita miséria. Na seca de 1942, cerca de 55 mil nordestinos se alistaram para a Batalha da Borracha.

Ou corre ou morre. Joaquim Moreira de Souza, de Russas, oeste do Ceará, explica: a seca me catucou. A ameaça de inclusão na Força Expedicionária Brasileira, que lutava na Itália, foi o empurrão que faltava. Mas na inauguração da Campanha Nacional da Borracha, Getúlio Vargas empolgou os indecisos. ``Brasileiros! A solidariedade dos vossos sentimentos me dá a certeza prévia da vitória''. Pra completar, um prêmio para o seringueiro campeão. O maior fabricante de borracha durante o ano levaria 35 mil cruzeiros. Isso e mais vantagens: uma viagem grátis, ou quase, de caminhão, trem e navio por mais de cinco mil quilômetros até o ``El Dorado''.

Só em Fortaleza, no Ceará, a Campanha da Borracha encontrou 30 mil flagelados à espera de ajuda. No Interior do Estado (Sobral, Iguatu e Crato), o Governo Federal também abriu postos de arregimentação. Um exame físico e a assinatura de contrato selavam o compromisso. Os voluntários passavam a empregados de imediato. Com direito ao salário de meio dólar por dia e alojamento até a partida, a tropa vivia sob firme disciplina militar. Para abrigar tanta gente, às vezes mil em um único dia, o jeito foi construir uma hospedaria modelo, de nome Getúlio Vargas, perto da igreja São Judas Tadeu, no bairro Olavo Bilac, zona Oeste de Fortaleza.

Além de aliciadores profissionais, a mando dos patrões - donos de seringais no Amazonas -, o trabalho de convencimento era feito por padres, médicos, advogados. A promessa era de que os voluntários voltariam como heróis da Pátria, sob total apoio do Governo Federal, e ficariam ricos na extração da borracha. O que não foi dito, milhares de nordestinos tiveram que descobrir depois, quando já era tarde demais para voltar. De livres, passaram a escravos. No coração da selva, isolamento e solidão. Eles trabalhariam para pagar uma dívida econômica e moral com o patrão. De lá, não se podia escapar.

A prisão pela dívida. O soldado já chegava devendo. Um patrão ou seringalista anotava o débito em sua conta e ele trabalhava para pagar. Um novelo de linha que nunca tinha fim. Havia sempre mais dívidas a pagar: a comida, a roupa, a arma, o material de trabalho, o remédio. Tudo era vendido, a preços dobrados, por uma única pessoa. E ela não tinha pressa, nunca, em dar baixa naqueles números infindáveis. Algemas invisíveis para um exército enganado. Os nordestinos descobriam, então, o que era o Inferno Verde.

Para muitos, foi como uma condenação à morte. O mundo dos cavalos, bois, safras de arroz e feijão, sol e terra, secas e flagelos se acabou. Agora eram canoas e barcos, onças pintadas, estranhas moléstias, florestas e rios tortuosos. A população da Amazônia reparou no espanto. Assim, a patente era de soldado e o apelido de passarinho. Os migrantes eram como a pequena ave de arribação, o arigó, típica do Nordeste, que vaga de uma lagoa a outra. Mas os problemas começavam antes da chegada à Amazônia. Promessas mirabolantes eram chamariz para os desavisados.

A parafernália de organizações estrangeiras e brasileiras, envolvidas na operação de guerra, não se entendia. Do lado americano, a Board of Economic Warfare hostilizava a Reconstruction Finance Corporation. A Rubber Reserve Company não se comunicava com a Defense Supllies Corporation. Do lado brasileiro, o Serviço de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (Semta), a Superintendência para o Abastecimento do Vale Amazônico (Sava), o Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), o Serviço de Navegação da Amazônia e de Administração do Porto do Pará (Snapp) pareciam não falar a mesma língua.

A Torre de Babel podia ter rendido pelo menos um conto: O Caso do Sumiço das Mulas. Em 1942 pelo menos 1.581 mulas se perderam entre São Paulo e Acre. A última notícia que se teve dos animais é que, depois de quatro meses, não haviam chegado ainda a Cuiabá. Ou então a importação de 5 mil toneladas de farinha de trigo por conta de um erro na tradução português-inglês. Nesse caso, tudo o que os soldados da borracha queriam era a velha farinha de mandioca. O alfaiate João Rodrigues Amaro, 72 - na época com 17 anos -, não achou graça desses e de outros enganos na Campanha da Borracha.

Alistado em Sobral, norte do Ceará, ele conta que a comida nos pousos, ou seja, alojamentos, era péssima. Muitas vezes o cozinheiro levava na cara o prato de alimento. Na água e no sal, o feijão, arroz, farinha e charque. Pra evitar a reclamação, o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia contratou três nutricionistas e alardeou a notícia pelos jornais do Rio de Janeiro e São Paulo. Marta Novais Filho, por exemplo, tinha a tarefa de padronizar a bóia dos amarelados guerreiros da borracha, como diz o jornal Suplemento Econômico (Rio de Janeiro, em 1942).

Milhões de moscas perseguiam os homens nos refeitórios, dormitórios, recreios. No alojamento de Belém, um surto de meningite matou pelo menos 12 pessoas. A assistência médico-sanitária era precária. O mês em que não havia óbito era comemorado. O exames de rotina se limitavam a diagnosticar se o soldado havia ou não contraído doenças sexualmente transmissíveis. No ato da admissão, banhos e raspagem de cabelo. Os incapazes e doentes eram dispensados. Sair dos alojamentos, só com autorização da chefia e mesmo assim com hora pra voltar.

Com o passar do tempo, cercados de arames e vigias, os alojamentos começaram a parecer campos de concentração. Sem trabalho ou tarefa fixa, sem atividade esportiva ou um simples aparelho de rádio, migrante brigava com migrante ou com a guarda. Para o Departamento Nacional de Imigração, esses conflitos tinham jeito de motim. Para a população, de arruaça. Soltos, andavam ao léu pelas ruas e as brigas se multiplicavam. Os arigós, enquanto aguardavam transporte para a viagem, eram chamados de vagabundos, de come-e-dorme, temidos, com suas peixeiras e, mais tarde, facas jebond. (Ariadne Araújo)


Arte de Chabloz mobiliza soldados

Uma procissão se aproxima. Homens, mulheres e crianças se arrastam pela estrada. Uma nuvem de poeira toma conta do ar. Para Jean-Pierre Chabloz, uma acidental testemunha da seca de 1943 no Ceará, aquele era um cenário saído de um campo de concentração. Fantasmas, mais que seres humanos. Em uma rede suspensa por um pau, uma criança morre de fome. A visão é de desastre. Vales descarnados. Nos arbustos, apenas uma ou duas folhas prestes a cair. Tudo sob o peso de um rigoroso racionamento. Extensões queimadas e requeimadas, fazendas sonolentas e aquela infindável multidão de retirantes.

Em 1942, O artista plástico suíço Pierre Chabloz se apaixonou pelo Ceará ainda na estrada, durante uma viagem de 24 horas de São Luis (MA) a Fortaleza (CE). Ele vinha contratado pelo Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (Semta). Era o novo chefe da Divisão de Desenhos Publicitários na Campanha Nacional da Borracha. A primeira tarefa: criar quatro grandes cartazes para incentivar a produção de látex. Depois, vários mapas de biotipos de nordestinos, que ajudariam na seleção dos candidatos. Por último, a decoração publicitária dos caminhões que, periodicamente, levariam as turmas contratadas até metade do caminho.

As peças publicitárias da Campanha da Borracha foram enviadas para todo o Norte e Nordeste do País. Para fazer o trabalho, Pierre Chabloz teve que viajar em um pequeno avião até Belém, no Pará. A idéia era ver pessoalmente a extração de látex para reproduzir. Também de São Luís veio a sede do Semta. No Maranhão a arregimentação caminhava de forma lenta. Os candidatos não apareciam. A notícia de milhares de flagelados no Ceará, em busca de ajuda na Capital, quase foi comemorada. Não por Chabloz, que se admirou com a força que viu nos retirantes.

As impressões do artista plástico foram anotadas em um diário escrito em francês. Hoje, todo o detalhamento do trabalho do Semta - desenhos, explicações minuciosas sobre os alojamentos, passeatas, transporte -, está a salvo no arquivo do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (Mauc). Pierre Chabloz também guardou exemplares dos cartazes e fotos raras da época, feitas por ele, para ilustrar suas explicações particulares. (AA)

Campanha era puro engodo

Tudo pela vitória comum. Um trabalho de brasilidade. A propaganda dirigida e veiculada nos meios de comunicação fazia cada novo trabalhador na seringa se sentir um genuíno soldado de um novo front, a Amazônia. No discurso, eles eram tão importantes quanto os aviadores e marinheiros que lutavam no litoral contra a pirataria submarina ou ainda os soldados das Nações Unidas. Contribuição anônima de trabalhadores admiráveis. Sacrifício e labor incansável. Ainda por cima, ``dinheiro a rodo''.

Puro engodo. A mais chocante das mentiras era a forma de apresentar a coleta do látex. Nas esquinas, retratos de seringueiros em meio a infindáveis tambores carregados por caminhões ou jeeps. É claro que não se tratava dos seringais da Amazônia, mas das plantações da Firestone na África ou da Malásia e Ceilão. A persuasão ideológica gastou milhões de dólares na imprensa, rádio e cinema.

Outra campanha de persuasão abarcava todos os brasileiros. Ainda na política de boa vizinhança, o Brasil foi invadido por jornalistas, radialistas, editores, professores, cientistas, artistas, escritores, músicos, diplomatas, empresários, técnicos, estudantes e pesquisadores de mercados do Norte do Continente. Eles traziam o american way of life. O ministro Oswaldo Aranha, numa tirada de bom humor, explicou: mais uma missão de boa vontade e declaramos guerra aos EUA. (AA)

Eles fizeram esta história

Favela e palafita - Lá é cavalo. Aqui é canoa. A diferença até hoje não sai da cabeça de Lourenço Canário da Silva, 75. No bairro da Lagoa, no igarapé São Salvador, em Cruzeiro do Sul, no Acre, ele mora com a mulher em uma palafita. A comunidade, cerca de 380 famílias, compõe uma grande favela às margens do braço do rio Juruá. Um cenário muito diferente do que Lourenço conheceu em Aracoiaba, no Ceará, onde nasceu. ``Ganhei uma passagem de Getúlio Vargas e em troca dei minha vida. Tudo mudou''. Como soldado da borracha ele conseguiu uma aposentadoria de dois salários mínimos. É o que sustenta a casa.

Cordel e turismo - Um ex-seringueiro, Raimundo Nonato da Silva, 66, ganha a vida hoje contando a história da campanha da borracha para os turistas. No Museu da Borracha, em Rio Branco, no Acre, ele recebe os visitantes e mostra um pouco da vida na floresta, na extração do látex. ``Meu pai era cearense. Eu era pequeno, mas via o que os patrões faziam com os seringueiros. Eles amarravam as pessoas, metia a peia e botava pimenta nas feridas. Era preciso ser muito homem''. O sofrimento dele e do pai estão nos versos de cordéis que ele escreve. Uma poesia que veio como herança dos antepassados do Ceará.

Saúde comprometida - O boato de ficar rico fez Joaquim Evangelista Pontes, 78, deixar o emprego de entregador de pão em Russas, no Ceará, para ser seringueiro em Rio Branco, no Acre. ``Escapei foi por aqui''. Um companheiro de profissão, Sebastião Simão, 90, teve menos sorte. ``A vista enfraqueceu de tanto trabalhar no escuro, pela madrugada a dentro, atrás da borracha''. Simão veio do Rio Grande do Norte, na época da II Guerra, e hoje suas lembranças são de tristeza e de doenças. ``Até hoje tenho dor de cabeça e esmorecimento de tanta picada de mosquito que levei. Passei muito tempo em hospital. Quase morri''.
Sou filho do nordestino,
Natural do Ceará; vim embora para
O Acre para a seringa cortar, produzir
Borracha, ganhar dinheiro, para a sua
Terra de origem um dia poder voltar.

Raimundo Nonato (RN), cordelista e soldado da borracha)


Saindo lá do Nordeste onde
Morava no sertão, deixando lá os seus
Pais, junto com seus irmãos, para
Vir morar nas matas do Acre, no
Seringal do patrão.

(RN)
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A caminho do inferno verde

 O sacrifício pela Pátria começava na viagem. Em caminhões, trens de cargas e navios, os migrantes passaram meses de maus tratos até a Amazônia. O medo de um ataque fulminante por submarinos alemães era o terror em alto mar.

Em carrocerias de caminhões, em vagões de trem de carga, na terceira classe de um navio até o Amazonas. A viagem dos arigós era difícil. De Fortaleza até o seringal, por exemplo, podia demorar mais de três meses. Pior que o desconforto, só o perigo de ir a pique no meio do mar. Afinal, em tempos de guerra, era comum a notícia de ataques de submarinos alemães. Para prevenir, os soldados da borracha recebiam instruções e um colete salva-vidas. Em caso de naufrágio, nos bolsos internos, havia uma pequena provisão de bolacha e água. Em caso de captura pelo exército inimigo, uma pílula de cianureto. Era escolher entre o suicídio e a prisão inimiga.

Durante o percurso, valia a lei do blecaute para os soldados da borracha. Proibido fumar ou acender sequer um palito de fósforo. Os navios cheios de arigós eram comboiados por dois caça-minas e um avião torpedeador. Estratégia de segurança para prevenir o ataque alemão. Uma luzinha no mar significava alvoroço a bordo. Marinheiros e binóculos no convés. Terror entre os passageiros que não sabiam nadar. Além do susto, mau trato. Aos migrantes, era oferecida uma alimentação péssima e reduzida. No relento - em muitos casos famílias inteiras -, eles pensavam que outros perigos e dificuldades ainda viriam.

Do Lloyd Brasileiro, o maior navio de transporte de passageiros e cargas da época, para os Gaiolas. Essas embarcações menores, construídas na Inglaterra, EUA e Holanda, levavam os soldados e mercadorias até os seringais. Os de maior porte e melhores acomodações - dois conveses - eram chamados de Vaticanos. Os de fundo chato, tinham o apelido de Chatas. Afora esses barcos, os arigós viajavam também de lanchas, as Higgins, construídas por trabalhadores brasileiros sob o patrocínio financeiro dos americanos. Junto a bois ou material inflamável, apertados em uma promiscuidade desumana, milhares de nordestinos saiam do mar para os rios que comandam a vida no Norte.

O alfaiate João Rodrigues Amaro, 72, deixou uma namorada em Sobral, norte do Ceará. Pra quem costurava um paletó por dia e ganhava 60 cruzeiros, a viagem para o ``El Dorado'' era certeza de ficar rico. A tropa que saiu com ele, pegou o caminhão cantando uma despedida. Eles repetiram o refrão até cansar e perceber que as coisas não eram bem como Getúlio Vargas dizia. Mas só depois de dois dias em pé, numa carroceria de caminhão e estrada ruim até Teresina (PI); outro trecho em pé ou sentado em vagão ou no lastro de trem Maria-Fumaça até Croatá e Maracanã (MA).

Do Maranhão ao Pará, a viagem de navio fez muita gente vomitar, enjoar e adoecer. No navio Pedro I, onde João Amaro embarcou, iam mais 1.200 nordestinos. Muitos soldados levavam as famílias para a Amazônia. Mas o alfaiate foi só, pensando no ouro branco e na namorada que acabou casando na ausência dele. Em Belém, a tropa passou 22 dias esperando um Gaiola para a descida ao seringal. Espera demorada de transporte era sinal de problemas nos alojamentos.

No pouso do Maranhão, por exemplo, a comida ruim causou um motim. Zé Doutor, um amigo de João Amaro, foi morto por um soldado da guarda por causa da reclamação na hora do almoço. Revoltados com o assassinato, cerca de dois mil homens se rebelaram e foram a pé de Maracanã a São Luís, no Maranhão. Quase uma hora na estrada. O exército levou metralhadoras para acalmar o pessoal. O negócio era botar a tropa toda, e rápido, num navio para Belém. Mas nem sempre isso era possível. O que normalmente acontecia eram longos e enervantes dias de convivência em pousos, nas cidades com postos de baldeação.

Diferentes do construído em Fortaleza, cidade sede da arregimentação, alguns alojamentos foram levantados em zonas de malária, como os de Belém e de Manaus. Barracões sem tabiques divisórios compartilhados por homens, mulheres e crianças. João Amaro ficou em um pouso onde o banheiro coletivo era uma vala comum com dois metros de profundidade e 20 metros de comprimento. Para utilizar a fossa improvisada, a pessoa teria que se equilibrar em dois paus deitados sobre a abertura da vala. O soldado da borracha conta que, devido ao incômodo da posição e aos riscos que a operação exigia, vez por outra alguém caía no buraco. Nesses casos, não raros, o desastrado era puxado por uma corda.

Desordens. Brigas. Desacatos. O exército da borracha chegava à metade da viagem com os nervos a flor da pele. Os alojamentos eram cercados e vigiados, mas as liberações para um passeio na cidade representavam problemas com a população. Segundo João Amaro, os cariocas, em menor número, porém mais afoitos, eram os piores. Nas ruas, beijavam as moças à força e criavam confusão. Os jornais denunciavam: não são a fina flor do sertão, mas a lama do asfalto, o rebotalho, roubando, matando, saqueando e ferindo. Era essa a fama do exército que Getúlio Vargas mandou buscar na caatinga nordestina.

Um órgão, o Serviço de Navegação e Administração dos Portos do Pará (Snapp), ficou com a responsabilidade do transporte dos soldados voluntários. O ministro da Mobilização Econômica para o Esforço de Guerra, o tenente-coronel João Alberto Lins de Barros fez as contas: o recrutamento e transporte de homens para a Amazônia sairia a US$ 100 por cabeça. Além dos cálculos, ele tinha um plano. Transportar, sob uma firme disciplina militar, a tropa numa marcha para pontos estratégicos descendo pelo Tocantins até a Amazônia.

A idéia era construir 40 pontos de pouso para alimentação, banhos e dormida, além de inspeção e assistência médica. O próprio ministro afirmava já ter atravessado essa área - 600 milhas - a pé. O diretor da Rubber Reserve Company (RRC), D. Allen chamou a proposta de blefe de mau gosto. As críticas mostraram que a rota do Tocantins era inviável e massacrante. O escoamento deveria ser feito pela rota Nordeste: Fortaleza, São Luís, Belém. Na ocasião, o ministro João Alberto perdeu a discussão, mas ganhou vários ``afilhados'', batizados com seu nome, filhos de soldados da borracha que nasceram durante a arregimentação, nos alojamentos do Semta.

Em Fortaleza, onde o trabalho cresceu, o ministro João Alberto realizava missas campais para soldados e familiares. O padre Tiago Zuarthoad era o assistente eclesiástico do Semta. A benção era notícia no jornal Unitário no dia 31 de março de 1943. Na reportagem, o redator conta que o bota-fora dos soldados era feito em meio a ``vivas''. Pelo acordo, as famílias dos voluntários também seriam amparadas, com alimentos, escolas e assistência médica. Mas isso não aconteceu. Todo o interesse se concentrava no transporte imediato dos homens para a Amazônia. Uma passagem só de ida, onde nada que foi prometido valeu.

Na volta, depois de pagar a dívida com o patrão no seringal, além da namorada, João Amaro encontrou também a mãe casada. Dois anos na Amazônia tinham lhe rendido uma ficha com malária, febre amarela, impaludismo, icterícia. A mãe não reconheceu o filho. Magro, amarelo e cabeludo, nem de longe ele se parecia com o adolescente que se inscreveu escondido no exército da borracha. ``Sai atrás de dinheiro e voltei pobre e doente''. (Ariadne Araújo)


Propaganda ideológica

A tempestade de propaganda é imperativa: Trabalhador nordestino! Alista-te no Semta hoje mesmo e cumpre teu dever para com a Pátria. Esse tipo de convocação era característico do Estado Novo, com uma política centralizada, condutor de massas, aglutinando sentimento cooperativista que se volte para o trabalho e produção. Os cartazes, desenhos, fotografias e gráficos sobre o Semta e a borracha estavam em vários pontos de Fortaleza e outras Capitais do Nordeste. O material estava na vitrine das casas comerciais, Correios, Banco do Brasil, estações ferroviárias e Palácio do Governo.

A intenção era confundir a condição de trabalhador com a de soldado. Os campos de trabalho passam a ser campos de batalha. Os termos exército, alistamento, recrutamento, soldado, batalha, guerra estão sempre presentes. Em cadeia nacional, o Programa da Borracha garantia o envolvimento político dos ouvintes. Nas ruas, as vantagens do Semta eram divulgadas em panfletos. A propaganda dizia que os migrantes teriam direito a 60% da borracha produzida, 50% da castanha colhida, 50% da madeira derrubada, direito livre à caça, à pesca, às peles de animais silvestres abatidos e ainda a um hectare de terra para plantar.

O contraste entre a seca e a Amazônia é reforçado. Era preciso convencer o cidadão de que a floresta não representava mais o inferno verde, mas a terra da promissão. O sonho do paraíso contagiou as tropas que lotavam os caminhões. Em comboio, a cada partida, eram uma média de 10 a 12 carros lotados. Seguindo atrás, um último caminhão levava mantimentos para a viagem. Embora a campanha fosse nacional, o Ceará era o espaço ideal para o discurso.

Um trabalho educativo sobre cuidados com o corpo - boa alimentação, higiene, exames médicos periódicos -, também foi realizado. Afinal, era importante que os voluntários tivessem boa disposição e saú© de para o trabalho duro da extração do látex. A proteção à família dos voluntários funcionava como um estímulo: o trabalhador viajava despreocupado. A Igreja também participava da campanha. O padre Tiago Zuarthoar, o eclesiástico do Semta, dava assistência religiosa aos voluntários e famílias. (AA)

Medo e preconceito com a chegada dos nordestinos

``Tudo ladrão e assassino. Tudo do calibre de Lampião. Só carabina pra lidar com arigó''. Armédio Said Dene, 81, filho de libanês, foi dono de cinco seringais no Acre. Para ele, a borracha só trouxe dor de cabeça. Em épocas de glória, Said Dene até comprou apartamento no Rio de Janeiro. O suficiente para garantir uma velhice tranqüila. O barco, utilizado por ele para comercializar mercadoria nos rios, no entanto, está sucateado. Hoje a produção nos seringais, ainda em nome dele, é zero. ``Tenho é prejuízo com os impostos pagos ao FHC. Tudo perdido. Em tempos bons eram 120 toneladas de látex por ano''.

O fim do último ciclo da borracha na Amazônia acabou, inclusive, com os sonhos da família Said de voltar à Síria em definitivo. O preço da borracha despencou e foi um salve-se quem puder. Os nordestinos foram liberados e Said guardou, por exemplo, a velha espingarda com a qual enfrentava o ``cangaço'' dos arigós. ``Era nós ou eles''. Era esta a maneira geral do patrão tratar o seringueiro. O preconceito se fortaleceu já na chegada dos migrantes ao Norte do País, por causa das brigas e confusões em que a tropa se envolvia. Na época, a população de Manaus via com insegurança e medo a chegada das famílias nordestinas.

Eles lutavam sem medo
Ferozes como um leão, quando a noite
Baixava o degredo, o véu da escuridão
Eles olhando o firmamento
A Deus pediam proteção.

(RN)
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Tragédia no seringal

 O exército da borracha foi abandonado no front. No meio da selva, a prisão moral e física pela dívida, solidão, isolamento. Na base do salve-se quem puder, os nordestinos tinham que aprender rápido a produzir o látex. Sem borracha, sem comida. Sem borracha, sem liberdade.

Flagelados, migrantes, enganados e cativos. O exército da borracha foi abandonado no front: a selva. Festa para as mutucas, meroins, piuns, borrachudos, carapanãs. Além do desconforto com a praga de mosquitos, doenças. Um remédio, a velha Atebrina, indicado para febre amarela, sarava quase tudo. Em todo caso, melhor era descobrir, e rápido, saídas na natureza para os males tropicais. Muita gente não conseguiu. Uma caravana de estudantes cearenses foi à Amazônia ver de perto a situação dos conterrâneos e voltou com um número assustador: pelo menos 23 mil nordestinos já tinham morrido na batalha da borracha.

Por conta e risco. Cearenses, paraibanos e maranhenses tinham que conviver com a malária, febre amarela, beriberi, icterícia e ainda ferimentos ou problemas de saúde decorrentes da intensa e árdua atividade. O soldado da borracha Antônio Madeira, 72, foi alistado em Sobral, no Ceará. A caminho de Rio Branco, ele conta que viu um paraibano, também arigó, morrer à míngua. ``Eu chamei a enfermeira do Semta, mas ela disse que a febre dele era manha''. Dois dias depois, o paraibano morreu com os olhos abertos, sem ajuda, sem remédio. ``Eu e Antônio da Luz pusemos um toco de vela em suas mãos frias. Cavamos a sepultura na sombra de uma árvore e cobrimos a cova com flores silvestres''.

Os migrantes eram esperados nos portos do Vale Amazônico. Os seringalistas escolhiam os mais fortes, separavam suas tropas, cuidavam do transporte até o seringal. Na partilha dos grupos, novas e velhas amizades se separavam. Afinal, o trabalho era feito na mata, no máximo, em duplas. Com uma caderneta na mão, os patrões iam registrando tudo o que gastavam com os arigós. A dívida e a escravidão começavam. Os contratos de trabalho eram para inglês ver. Nada do que foi prometido valia. A lei era da bala, surras, ameaças, mortes. O patrão fazia pressão com seus capangas. Controlava a comida, a roupa, o transporte, o remédio.

A exploração nos preços era garantia de aumento da dívida. A borracha era a moeda. Um quilo de toucinho equivalia a dois de látex. Armas e munições tinham uma cotação mais alta na tabela de preços. A espingarda, vendida a 229 cruzeiros no comércio, custava o dobro na floresta. Um quilo de café, por exemplo, era vendido no seringal a 10 cruzeiros, enquanto na cidade custava 2,50 cruzeiros. No entanto, não havia como fugir. O patrão controlava o abastecimento. Sem borracha, sem comida. Sem o saldo da dívida, sem liberdade. O freguês, como era chamado o trabalhador, devia mais que látex ao patrão: obediência e respeito.

Salve-se quem puder! O freguês joga o jogo do enganado por enganado. Para se vingar do patrão, vende borracha escondido para o regatão, um comerciante ambulante ao longos dos rios e igarapés da Amazônia. Em troca do ouro branco desviado, quinquilharias de baixo preço. O pequeno pecado, no entanto, tem risco alto. Na maioria dos casos, acaba em morte. O freguês descobre, mais uma vez, que o jogo sempre vira para o mais forte. No Livro do Tombo da Prelazia do Acre, a história conta uma vez que o mais fraco tentou se organizar.

O caso aconteceu no ano de 1943, às vésperas da festa de São Sebastião, quando cerca de 200 arigós combinavam apresentar ao interventor do território do Acre, Silvestre Coelho, um abaixo-assinado reclamando das péssimas condições de vida e de trabalho nos seringais de Rio Branco. Dois padres, José Carneiro e Peregrino Carneiro redigiram a carta e foram à corte marcial por isso. Acusação: sabotagem do esforço de guerra. Por essa e outras frustradas tentativas, os arigós usavam, vez por outra, a velha espingarda de caça contra o capanga do patrão. Era matar ou morrer.

Uma espingarda cartucheira (terçado Collins), um lampião a óleo diesel (poronga), uma faca jebond (usada nos seringais do Oriente). Ainda de madrugada, o arigó deixa a palafita (o barracão), construída em meio a floresta, para percorrer as ``estradas de seringas''. No caminho, ele vai cortando árvores, encaixando tigelas para aparar o látex e só depois volta para recolher a produção do dia. A espingarda pode salvá-lo de uma emboscada de índio ou de fera. O lampião, acoplado na cabeça com um suporte de alumínio, clareia o caminho ainda escuro. A faca sangra as árvores sem perturbar a produtividade.

Além de arigós, o apelido de brabos. Os nordestinos não sabiam nada do trabalho. Adoeciam e morriam com facilidade. Demoravam a se acostumar à solidão e à lei da mata. Reclamação grande era a de falta de mulher. Quanto maior o isolamento, maior o problema. Os casados que se cuidassem. Uma esposa podia significar morte no seringal. ``Freguês matava freguês pra roubar a mulher'', lembra Alcides Rodrigues da Silva, 83. Pra resolver a questão, tinha patrão que mandava buscar mulher em lugares distantes. Mas o seringueiro reclamava: as melhores ficavam pra quem mandava no seringal.

Alcides Rodrigues Correa da Silva, 78, não enfrentou esse problema. Tinha a mulher, Estelita, hoje também com 78 anos. Para ela, mais que o de ser raptada, o medo era de índio. Na estréia da chegada do casal, duas mulheres grávidas foram assassinadas por uma tribo e os fetos retirados da barriga. O crime, como outros tantos, ficou impune. ``Era proibido matar índio. Eles viam a gente primeiro. Conheciam melhor a selva''. Durante 10 anos, Alcides levou carga de látex nas costas, cerca de 40 quilos, numa cesta de cipó, a jamachiu, segura por arriatas no peito e testa do trabalhador. Pra completar, o percurso: oito horas por dia, pelas margens do rio Juruá (Cruzeiro do Sul - Acre).

O seringalista também garantia diversão. No fim de semana, o barracão do patrão promovia um forró para a tropa solitária. Se calhasse na sorte, o arigó até chegava de camisa de tricoline, para impressionar. Quando não tinha mulher, dançava homem com homem. O negócio era beber cachaça e ouvir música. Quando não tinha cachaça, bebia-se álcool puro e, em caso de luxo, álcool misturado ao leite. O ``rabo de macaco'', como era chamado o preparo, esquentava o forró que bem podia terminar em ``pega-pra-capar''. Além dos sopapos, as festas serviam também para divulgação de histórias de trancoso. A preferida: o caso do homem devorado pelo Mapinguari, um dos mitos da selva.

Ter saldo com o patrão podia ser perigoso. Alguns seringueiros foram mortos na hora de cobrar a liberdade. Outros, raros, deram a volta por cima. Depois de pagar toda a dívida, foram comercializar rio abaixo e acima ou passaram a gerente de patrão. Alcides Rodrigues da Silva fez isso. No seringal Cruzeiro do Vale, ele passou a transportar gente e borracha em um batelão nos afluentes do rio Juruá, no Acre. Mais tarde, na foz do rio Tejo, gerenciou um seringal. ``Eu sabia o que eles sofriam, por isso ajudava do jeito que podia''. (Ariadne Araújo)

Americanos batem em retirada

Uma revoada. Tratores abandonados em plena floresta. Barcos incompletos nos estaleiros. Estruturas para construção largadas nas barrancas dos rios. Aeroportos entregues a atônitos funcionários brasileiros. Os americanos batiam em retirada. Após a capitulação japonesa, em agosto de 1945, a borracha brasileira não interessava mais. Utensílios, máquinas, caminhões, tratores, barcos, navios, equipamentos de rádio. A Rubber Developement Corporation (RDC) vendeu tudo ao Banco de Crédito da borracha.

Para efeito de propaganda, uma ou outra cerimônia oficial. Funcionários americanos transmitiam às autoridades brasileiras o reconhecimento ao papel vital desempenhado pelos soldados da borracha no esforço de guerra. Um hospital, construído e dirigido durante a guerra pela United States Rubber Developement Corporation, em Manaus, foi transferido ao Brasil. Pra completar, Henry Ford, o magnata americano, anunciou o fim da mais cara tentativa de cultura racional do látex no País. Desistiu das propriedades de Fordelândia e Belterra, às margens do tapajós, no Pará.

Um tiro mortal dos Aliados. Em alvoroço, o Brasil se reúne na Conferência Nacional da Borracha para decidir o que fazer. O problema principal era o preço que garantisse a sobrevivência da atividade frente a concorrência. A borracha oriental e a sintética encheram o mercado internacional com um preço três vezes mais baixo que o látex brasileiro. Com a desmobilização dos americanos e o fim da ditadura de Getúlio Vargas, os meios de comunicação começaram a denunciar a sorte de uma população - 36 mil homens para o corte da seringa e mais 19 mil dependentes.

Eles fizeram esta história

Conhecendo farinha - O casal João e Glória de Souza moram em uma casa de madeira, em um barranco às margens do rio Juruá. Filho de cearense, ele conta que, no seringal, passou a conhecer algumas coisas do Ceará, como a farinha. Nos tempos de soldado da borracha, ele e a mulher esperavam o regatão que vinha subindo o rio com mantimentos. Hoje a comida é doada pelos filhos e netos.

Sem aposentadoria - Irene Maria da Silva, 60, não tem mais esperança. O aposento de tantos anos no seringal Fortaleza, às margens do rio Juruá, não virá nunca. Sem chances para quem não tem documentos e ninguém quer ser mais testemunha. Hoje, ela e a família sobrevivem de uma pequena agricultura e da pesca de peixes. ``Fomos desprezados pelos soldados da borracha. Gente que nunca cortou seringa conseguiu o aposento''. Na época em que ela e o marido trabalhavam na mata, muitas vezes Irene Maria tinha que cozinhar quilos de carne de onça e veado.

De empregado a patrão - De seringueiro a seringalista. Alcides Rodrigues da Silva, 83, e Estelite Correa da Silva, 78 , tiveram 14 filhos nos seringais. Depois de tantos anos na floresta, pelo menos 10 no trabalho pesado de soldado da borracha, Alcides da Silva tem que cuidar muito da saúde. Por causa do peso da carga de látex que era obrigado a levar nas costas, ele tem hoje um problema na coluna. O tratamento já consumiu 43 injeções. Aposentado, ele quase não pode andar sem a ajuda da mulher que ainda se lembra das aflições da mata, como o medo de ser morta por índio.

Caminhando pela selva
Fui seringueiro formado
Vivendo com os índios em galhos de árvores trepado
Comendo frutas silvestres,
Comendo anta e veado.

(RN)
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(Des)cuidando da memória

 Monografias, teses de doutorado, temas de debate nas salas de aula e nas Organizações Não Governamentais, espaços reservados nos museus. O último e tenebroso ciclo da borracha atrai até hoje o interesse de centenas de pessoas no Norte do País. Mas o cuidado com o acervo ainda é feito sem critérios científicos.

A saga do Exército da Borracha já rendeu pelo menos uma tese de doutorado. Professor da Universidade Federal do Acre (Ufac), o catarinense Pedro Martinello se apaixonou pela história. A pesquisa abrange, inclusive, um farto material levado do Brasil para os EUA, arquivos de várias instituições americanas que trabalharam na Campanha da Borracha. Os microfilmes custaram US$ 500 e muitas noites de trabalho a Pedro Martinello. Depois de publicado pela Ufac em 1988, o estudo é hoje uma das mais completas e raras obras sobre o assunto.

Mas o tema vem despertando o interesse dos universitários, inclusive no Ceará. Maria do Socorro Gomes Vieira conseguiu seu grau de bacharelado na Universidade Federal do Ceará (UFC) com a monografia Soldado da Borracha - Discurso da emigração numa economia de guerra. No Museu da Borracha, em Rio Branco (AC), onde nem tudo é contado, são os turistas que ficam impressionados. O encarregado de receber os visitantes, o ex-seringueiro e poeta popular Raimundo Nonato da Silva, 66, sai apontando as peças da época, misturando história com versos de cordel, confundindo os estrangeiros. Ignorante sobre números, ele também é inocente sobre parte dessa saga: a viagem e o engano de milhares de nordestinos.

O Conselho Nacional dos Seringueiros, há 10 anos com sede no Acre, não cuida do resgate histórico. O objetivo é a organização dos seringueiros. A luta é para que eles continuem na floresta, que o preço do látex volte a subir e que saiam financiamentos para o plantio de arroz e feijão. Sobre a escravidão que ainda hoje subjuga os seringueiros, o Conselho Nacional explica que a denúncia é de difícil apuração, porque não há comunicação na maioria dos seringais. Os jornais do Acre, no entanto, ainda trazem notícias de trabalho escravo nos seringais.

O Centro de Trabalhadores da Amazônia(CTA) cuida da alfabetização e saúde do seringueiro. Segundo o coordenador Raul Vargas Torrico, 33, o órgão monta pequenas escolas nos seringais para ensinar o básico: as quatro operações, por exemplo. ``Na hora de comercializar o látex ele tem que saber fazer contas para não continuar a ser ludibriado''. Como a produção da borracha acabou, a proposta do CTA é que o seringueiro aproveite o látex para fabricar sapatos, bonecos, vasilhas, utensílios de borracha. ``Dá dinheiro, é bem aceito no mercado. Pode ser uma boa fonte de renda''.

O certo é que apesar das propostas, a passagem do século e o fim do último ciclo da borracha representaram pouco para o seringueiro. Ele ainda vive cativo e isolado no meio da selva, à mercê de um patrão. No Acre, por exemplo, as denúncias nos jornais e dos representantes de entidades que trabalham com a categoria mostram isso. Mas a distância e a dificuldade de acesso aos seringais parecem ser obstáculos grandes demais para serem superados ainda hoje, numa época em que a tecnologia faz do mundo uma grande aldeia, onde a comunicação é instantânea. Nos museus, a memória vem pela metade e empiricamente. (Ariadne Araújo)

Busca de alternativas

Até hoje ninguém sabe quantos pessoas e quantos são os seringais do Vale Amazônico. A Universidade Federal do Acre (Ufac) vem mapeando as colocações (sítios dentros dos seringais onde se extrai a borracha) pelos menos em uma reserva de extrativismo, a que leva o nome de Chico Mendes - a primeira a ser criada no Brasil. As outras, Assis Brasil, Rio Branco, Sena Madureira, Brasília e Xapuri, vão ficar para depois. A idéia é saber o que pode e o que não pode ser feito e quantas famílias moram nas reservas do Acre.

Em Chico Mendes, vivem 1.600 famílias. Com o mapeamento na mão, engenheiros agrônomos e biólogos da Ufac poderão saber também o que pode ser extraído da floresta além da borracha. O óleo de copaíba, o açaí, a andiroba, por exemplo, podem diversificar a produção. Mas o trabalho ainda vai demorar por conta do acesso difícil. A não ser que a Ufac consiga o que vem tentando há tempos: uma foto de satélite da região.

No Ceará, um pedaço dessa história é guardado no arquivo do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará. São fotos, cartazes, e dois diários (manuscritos em francês) de Jean-Pierre Chabloz. Tudo iniciativa particular de Chabloz. Além disso, são apenas histórias de vida de cearenses que conseguiram voltar do Inferno Verde - uma espécie de aventura do herói arigó. Do Semta, que teve sede em Fortaleza, não há quase vestígios. Os documentos, pilhas e pilhas de papéis com o cadastro dos voluntários, simplesmente desapareceram. Ninguém sabe, ninguém viu. (AA)

Eles fizeram esta história

A volta do paroara - Edgar Bezerra Mota, 72, cearense de Alto Santo, conseguiu escapar são e salvo, ou quase, da guerra pela borracha. Ele explica que não voltou antes para casa porque não queria ser considerado desertor e ficar marcado pelo Governo. Ele e mais 800 homens viajaram para o Norte no navio Pedro II, com medo de torpedo e de alemão. ``Além dos caça-minas, um Zepelin nos vigiava''. Na mata, conheceu índios, mas mansos. Conheceu também a malária e o beriberi. Lá, Edgar Bezerra passou dois anos. Quando tudo acabou, foi liberado. No Ceará, era, então, mais um paroara. O termo (paroara) é um outro apelido, dado aos arigós que fizeram o caminho de volta pra casa. Hoje ele não tem notícia dos companheiros que tiveram a sorte de voltar. Na praça do Ferreira, para um seleto grupo de amigos, nas noites folgadas dos aposentados e amantes do Centro de Fortaleza, ele conta o que viveu e sentencia: ``que coisa feia é uma guerra''.

Tantas saudades eu sinto
Da aurora da minha vida e daquelas
Seringas sofridas, que os tempos não
Trazem mais, naquelas manhãs tão fagueiras
Nas sombras das seringueiras, naqueles verdes
Corais, subindo montes e descendo montes,
Hoje eu não corto mais.

(RN)
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Heróis esquecidos

Um dia de glória. Nem que seja tarde demais. Os soldados da borracha, hoje todos com mais de 60 anos, festejam o 1° de maio. Na festa, eles dançam, cantam e falam do sonho da aposentadoria. No Acre, pelo menos 11 mil já conseguiram.

Chapéu de couro, forró e cordel. O cearense Pedro Coelho Diniz, 72, matou a saudade de sua terra. Passou um dia inteiro numa festa em homenagem aos nordestinos. Melhor que isso, só conseguindo o que todo soldado da borracha sonha: rever a família. Com a ajuda de um santo milagreiro, São Francisco das Chagas, ele também alcançou a graça. Pra pagar a promessa, tirou até foto na Basílica de Canindé, no Ceará. Quite com o santo, com Getúlio Vargas e com o patrão, ele agora tem um compromisso marcado com o passado pelo menos uma vez por ano.

Na festa do trabalhador, 1° de Maio, Pedro Diniz revê os companheiros de seringa - os nordestinos que não puderam ou quiseram voltar pra casa. Em Rio Branco, no Acre, eles conseguiram uma data festiva, uma cartilha, uma camisa e uma aposentadoria de dois salários mínimos. Para a festa, este ano no Clube Recreativo Rio Branco, a tropa de ex-soldados da borracha veio de longe. Cansada pela idade e pela doença, traz em sacos plásticos documentos, orações, cordéis e reivindicações mal resolvidas da época da guerra.

Maria Rosa Lajes, 71, chora de emoção e revolta. Ela luta para aposentar uma prima que veio numa leva de 600 pessoas do Ceará. Mas nem sempre a aposentadoria é possível. Segundo a Lei, duas testemunhas e toda a documentação possível resolvem o problema. ``Meu pai foi um herói. Trabalhava pro Governo e trouxe para cá essa carga de gente. Ele só falava nessa aposentadoria, mas morreu sem conseguir. O dinheiro foi depositado no Tesouro Nacional. Agora quero ver, pelo menos, minha prima justiçada. Afinal, foi uma vida cangaceira aquela''.

Palmas! A festa do Soldado da Borracha tem discurso. O prefeito de Cruzeiro do Sul, Aluízio Bezerra, divulga: só no Acre, 11 mil ex-seringueiros se aposentaram. Filho de seringueiro cearense, ele é o herói dos arigós. Em 1988, como senador pelo PMDB, Aluízio Bezerra conseguiu incluir o artigo 54, uma pensão mensal vitalícia, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. No ano seguinte, a Lei 7.986 regulamentou a concessão do benefício. Em 1990, a Portaria 4.630 dispõe sobre as instruções necessárias à execução da Lei.

Pra explicar toda essa complicação legal, o prefeito editou uma cartilha para os soldados da borracha. Uma história em quadrinhos fala da existência do benefício e diz como conseguir. A luta agora é para ver aprovado no Congresso Nacional o direito a um décimo terceiro. O exército aposentado escuta em silêncio. Autoridades e autoridades ao microfone. Por baixo da blusa, muitos usam a camisa de malha, uma nova farda do soldado aposentado. Estão felizes. Finalmente amparados. Nas próximas eleições, terão que mostrar como é grande a gratidão.

Depois da falação, música e merenda. Os arigós esquecem o reumatismo, as dores do corpo e da alma, e caem na farra. É claro, já não há mais saúde para o ``rabo de macaco''. No cardápio, só refrigerante com bolo. Sebastião Simão, 90, perdeu a vista, não consegue mais andar sozinho, passou cinco anos se tratando de impaludismo, mas não perde uma festa. Nascido no Rio Grande do Norte, ele fez família no Acre e hoje são os sobrinhos que o acompanham a toda parte. Enquanto há música, ninguém se despede. O 1° de maio dos soldados da borracha começa às 9 horas da manhã e vai até às cinco da tarde.

Quem mora mais longe e tem que pegar ônibus ou carona, chega um dia antes ou ainda de madrugada. O medo é de que as estradas, interrompidas e enlameadas, impossibilitem a viagem. Afinal, todo cuidado é pouco pra quem tem um compromisso moral, mais um, com tantos doutores. Depois é voltar na mesma pisada. Retornar aos biscates - venda de picolés e cigarros -, pra completar o dinheiro das despesas. O cearense Pedro Coelho Diniz levou o chapéu de couro pra dança e foi o último a sair. Lembrança dos finais de semana nos seringais onde ele fazia sucesso como pé-de-valsa.

Quem não mostra desempenho na dança, mostra nos versos. Napoleão Santos, 83, sabe fazer cordéis e contar de cabeça a história do Acre. Benedito Ferreira, 84, cearense do município de Russas, não aprendeu história, mas o castelhano de tantos anos na fronteira da Bolívia. Foi no país vizinho que ele trocou os dentes naturais, todos estragados, por uma coroa de ouro e se curou de cobreiro e fogo selvagem com a graça de Santa Luzia. Na festa, ele que não voltou mais ao Ceará, mata a saudade do forró e dos amigos.

Na música, a vaquinha só tem o couro e o osso e o cantador só deixa a terra natal no último pau-de-arara. Dessa vez, se o arigó aposentou o pé-de-valsa dos tempos dos seringais, é o caso de mulher dançar com mulher. São elas também soldados da borracha. Na maioria, viúvas que foram beneficiadas com a Lei. Choram, riem, apertam a bolsa sempre cheia de documentos e trazem pleitos novos para as autoridades. É sempre um parente que não tem como provar sua vida na extração do látex. Os homens, por sua vez, têm pedidos mais vistosos. Querem, por exemplo, desfilar no Sete de Setembro como heróis da Pátria, em pé de igualdade com os combatentes da FEB. (Ariadne Araújo)

OS DEZ MANDAMENTOS DO EXÉRCITO DA BORRACHA

1) Cumpriremos as instruções que nos forem legalmente enviadas, sempre recebidas com entusiasmo, procurando produzir mais borracha, porque a extraordinária ação do Presidente Vargas, como uma voltagem de potencial infinito, tem o milagre e a força de contagiar todos os brasileiros para a unidade e a salvação da Pátria;

2) Cumpriremos essas instruções, ingressando alegremente nas selvas, porque a palavra do Presidente Vargas, descendo do Catete e o nosso labor, subindo dos seringais, formam o mesmo hino da raça que distribui igualmente o seu sangue e os seus benefícios nos palácios, nas usinas e nas barracas;

3) Cumpriremos essas instruções, explorando e defendendo a imensidade das árvores, porque o presidente Vargas é um apóstolo da humanidade redimida, porque pertencemos aos 300 milhões de americanos que transformam o seu continente num Sinai, para as novas tábuas da lei e os novos decretos dos homem;

4) Prometemos convergir todos os nossos esforços na vitória da produção, certos que a nossa inércia seria uma traição aos Aliados que se batem pela liberdade, a irmãos que foram sacrificados pela vilania adversária, aos nossos aeronautas e marinheiros que exercem vigilância no litoral contra a tocaias dos submarinos;

5) Prometemos trilhar diariamente as estradas das seringueiras, porque enquanto honramos os compromissos do Brasil que o Presidente Vargas firmou perante o mundo, também realizamos uma outra de economia, integrando o Amazonas à economia nacional;

6) Prometemos cumprir as ordens do governo da República, porque arregimentados como soldados, trabalhamos como homens livres, à luz de contratos assinados no Ministério do Trabalho com as garantias das leis sociais, benemerência do Estado Nacional;

7) Juramos permanecer nos seringais para o que formos designados porque são quartéis do Brasil e deles não sairemos, cometendo crime de deserção, como não sairíamos de uma frente de batalha;

8) Juramos viver em máxima harmonia e disciplina, ao lado de seringalistas e seringueiros veteranos, porque são soldados da mesma batalha e brasileiros dos mesmos ideais porque descendem de pioneiros e desbravadores que souberam resistir e vencer, abrindo caminho para as investidas de hoje;

9) Queremos proclamar em juramento perante Deus, ante a Bandeira e o Hino da Pátria, o nosso espírito de sacrifício e lealdade ao presidente Vargas de quem cumpriremos as ordens, sejam quais forem as circunstâncias;

10) Queremos tornar bem claro que, pela vida ou pela morte, tudo faremos e aceitaremos em bem do Brasil, do continente americano, das Nações Unidas, na guerra universal contra a tirania e a opressão.

O seringueiro é um homem forte
De uma coragem tamanha
Enfrenta onça e enfrenta cobra lá no alto
Da montanha, pensando no seu futuro
Corta de noite no escuro, mas, coitado, nada ganha.

(RN)
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Mitos

 O Mapinguari, o Curupira, a Mãe da Mata, a Matinta Pereira, o Caboquinho. Eles encantavam, açoitavam e atormentavam os soldados da borracha em meio a floresta. Os mitos da Amazônia entraram no cotidiano dos nordestinos migrantes.

Dois metros de altura, cabeludo, couro resistente, unhas grandes e afiadas, um olho no meio da testa e umbigo grande por onde solta um cheiro mau que embriaga o caçador. O Mapinguari comedor de carne vive na floresta, segundo os índios Apurinãs. O mito assustou o exército da borracha nas madrugadas de extração de látex. Só um tiro no umbigo poderia matar o bicho. No Parque Chico Mendes, na periferia de Rio Branco (AC), uma reprodução do Mapinguari em tamanho natural conta a lenda para os visitantes.

No lugar da mula-sem-cabeça, do lobisomen, da alma penada, o Curupira, a Mãe da Mata, a Matinta Pereira, o Caboquinho, o boto. A floresta tem muitos perigos para quem vem do sertão nordestino. O Curupira é avermelhado e tem a forma de um macaco com os pés virados para trás. No dia em que o caçador vê esse bicho não consegue matar a caça: dá uma moleza, fica de azar. Para enganar o besta, o Curupira se transforma também numa linda moça que faz o caçador se perder na floresta. Se não for isso, pode ser a Mãe da Mata, que castiga o seringueiro que maltrata as árvores. Essa é uma velha magrinha, mas exigente e poderosa. Açoita cachorro e derruba arigó.

A Matinta Pereira é um pássaro de cor cinzenta e tem as asas amareladas. Cheia de encantos, às vezes aparece com cara de gente. O Caboquinho já é mais difícil de ser encontrado porque quase sempre fica invisível. É baixinho, anda em pé e seus cabelos são como de porco espinho. O Caboquinho, quando fica aborrecido, açoita o caçador e deixa pelo corpo da vítima as marcas de cipó. Histórias contadas de boca, nas festas dos seringais, para os brabos que chegavam do sertão.

A lenda do Mapinguari Comedor de Carne e Outras Histórias do Seringal foi escrita pelos próprios arigós e editada em um livro pelo Centro dos Trabalhadores da Amazônia (CTA). Segundo os autores, tudo o que foi contado é verdade. No livro, a onça é um dos mitos preferidos. A pintada subia na árvore e pegava o caçador desprevenido, rosnava e enfrentava cachorro. Francisco de Assis Monteiro conta o dia em que saiu pra caçar com o filho e matou uma delas. Uma cadela que acompanhava pai e filho não teve tanta sorte. Levou uma patada tão forte que ficou com a cabeça torta para um lado. (Ariadne Araújo)

Lembrança de casa

Tanto cearense, só podia dar nisso. Às margens do rio Juruá (AC) um seringal tem o nome Fortaleza. Mas no município Cruzeiro do Sul, a notícia é de dezenas de localidades chamadas de Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba. Uma maneira dos soldados da borracha se sentirem em casa. Por causa disso, José Pereira da Silva, 64, pode dizer que mora em ``Fortaleza'', a Capital onde nasceu o pai dele. José Pereira não corta mais seringa e nem conseguiu o aposento como soldado da borracha. Vive do plantio de arroz e feijão para sustentar a família.

Os vestígios da vida de soldado da borracha estão em toda parte. Em um dos quartos da palafita, às margens do rio, ele guarda as peles de onça pintada que matou com sua espingarda - outra relíquia, hoje amarrada no teto baixo da casa. ``Foram mais de 20. Nunca tive medo delas. A carne eu trazia para a mulher fazer a comida pros meninos''. Na vizinhança, outro soldado da borracha, o João Batista da Silva, 73, diz alimentar um sonho: conhecer a verdadeira cidade Fortaleza. ``Sou metido a peruano. Vou onde quero''.

Enquanto isso não acontece, o soldado da borracha esquece a tristeza e a miséria bebendo uma garrafa de álcool puro. Mais uma pra quem gosta de enfeitar a casa com as garrafas plásticas vazias penduradas pelos caibros. No seringal Fortaleza, as famílias ainda falam da extração do látex, mas as estradas de seringa já foram tomadas pelo mato e só na lembrança ainda vive essa história. E, às vezes, nos lamentos e reclamações de João Batista, bêbado e abandonado até hoje às margens do Juruá. (AA)

Eles fizeram esta história

Da ferrovia ao seringal - João Rodrigues Amaro, 72, escreveu o livro Retalhos da Minha Vida e Poesias Populares, onde ele conta o que sofreu na selva. Logo que chegou, foi recrutado para trabalhar na construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, mas uma praga de piolho branco, vulgo arroz elétrico, fez o arigó desistir. ``A coceira era tanta que eu andava de saia. Já não suportava a saudade e morria de arrependimento. O jeito era suportar''. Próximo emprego: coveiro em um vilarejo. Depois foi trabalhar nos seringais por dois anos. ``Quando voltei, minha mãe não me reconheceu''.

Sonhando com onça pintada - Vende cigarro, mas não fuma. Vai à festa, mas não dança. Benigno José Moreira, 73, deu uma pausa no trabalho apenas para rever os amigos soldados da borracha. Na época do seringal, o pai conseguiu comprar algumas cabeças de gado e ele acabou herdando uma parte. Mesmo tendo se passado tanto tempo, Benigno ainda sonha matando onça pintada. A venda de cigarros é pra completar o aposento e pra distrair a velhice. Na homenagem do 1° de Maio, dia do trabalhador, ele nem entrou. Ouviu os discursos do lado de fora mesmo. ``Aqui é melhor porque não passa ninguém sem me ver''.

Porta-voz - No Acre, um homem fala em nome dos soldados da borracha. Expedito do Nascimento, 72, nasceu em Xapori (pai e mãe cearenses). Ficou viúvo duas vezes e agora casou com uma mulher 40 anos mais jovem. Com 17 anos se alistou no exército da borracha e hoje, pelo menos nas festas de 1° de Maio, ele discursa em nome dos companheiros de seringa. Também é Expedito Nascimento quem orienta os desinformados sobre como tirar o aposento. ``Vida triste, mas eu venci. Afinal, apesar da malária, tenho saúde e ainda muito tempo pela frente''.

Mascipira ou Curupira
Como queiram chamar, ele é o rei da
Montanha e vive morando lá
Dono de todas as caças
Não deixa ninguém matar.

(RN)

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