soldados da borracha

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Reportagem Revista Época



 Reportagem da Revista Época

VIDA BRASILEIRA

Exército da borracha

Entre a seca e o front, 55 mil nordestinos cederam ao apelo de Getúlio e foram para a Amazônia em 1942. Lá foram deixados

PAULA MAGESTE (texto)
MAURILO CLARETO (fotos)
O assassinato do líder seringueiro Chico Mendes, em 1988, deu expressão internacional à pequena cidade de Xapuri, no Acre, e voltou o olhar do mundo para milhares de cidadãos que fazem da extração do látex seu sustento e das 'colocações' do Vale Amazônico sua morada. O que poucos sabem é que esse foi apenas mais um capítulo da saga da borracha. Durante a Segunda Guerra Mundial, um exército de retirantes foi mobilizado com pulso firme, propaganda forte e promessas delirantes para deslocar-se rumo à Amazônia e cumprir uma agenda do Estado Novo. Ao fim do conflito, em 1945, os migrantes que sobreviveram às durezas da selva foram esquecidos no Eldorado. 'É como se tivessem passado uma borracha na História', diz o cineasta cearense Wolney Oliveira, que está filmando o documentário Borracha para a Vitória, sobre o assunto. Passadas décadas, os soldados da borracha hoje lutam para receber pensão equivalente à dos ex-pracinhas.

De olho em empréstimos para implantar seu parque siderúrgico e comprar material bélico, o governo brasileiro firmou com o americano, em 1942, os chamados Acordos de Washington. Sua parte no trato era permitir a instalação de uma base americana em Natal e garantir o fornecimento de produtos como alumínio, cobre, café e borracha (os seringais da Malásia, controlados pelos ingleses, estavam bloqueados pelo Japão).
O então presidente Getúlio Vargas só tinha um motivo para perder o sono: com o fim do primeiro ciclo da borracha, na década de 10, os seringais estavam abandonados e não havia neles mais que 35 mil trabalhadores. Para fazer a produção anual de látex saltar de 18 mil para 45 mil toneladas, como previa o acordo, eram necessários 100 mil homens.
A solução foi melhor que a encomenda. Em vez de um problema, Getúlio resolveu três: a produção de borracha, o povoamento da Amazônia e a crise do campesinato provocada por uma seca devastadora no Nordeste. 'A Batalha da Borracha combina o alinhamento do Brasil com os interesses americanos e o projeto de nação do governo Vargas, que previa a constituição da soberania pela ocupação dos vazios territoriais', explica Lúcia Arrais Morales, professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará, autora do livro Vai e Vem, Vira e Volta - As Rotas dos Soldados da Borracha (editora Annablume).
Estima-se que 31 mil homens tenham morrido na Batalha da Borracha - de malária, febre amarela, hepatite e onça
O Ceará foi o centro de uma operação de guerra que incluía o recrutamento e o transporte para os seringais de 57 mil nordestinos - exército equivalente ao número de americanos mortos no Vietnã. Cerca de 30 mil eram cearenses. 'Havia uma política racial no governo Vargas', diz Lúcia. 'Diferentemente da Bahia e de Pernambuco, o Ceará não recebeu muitos negros. Isso garantia a manutenção de certo perfil étnico na Amazônia', explica.
A Rubber Development Corporation (RDC), com dinheiro dos industriais americanos, financiava o deslocamento dos 'brabos', como eram conhecidos os migrantes. O governo dos Estados Unidos pagava ao brasileiro US$ 100 por trabalhador entregue na Amazônia. Vargas criou o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (Semta), que recrutava os homens. 'Estava no roçado com papai e chegou um soldado que me mandou subir no caminhão para ir para a guerra', conta Lupércio Freire Maia, de 83 anos, nascido em Morada Nova, no Ceará. 'Eu queria só pedir a bênção à mãe, mas o soldado disse que não tinha esse negócio, não. O caminhão estava apinhado de homem.' Maia tinha 18 anos. Nunca mais viu a mãe, a mulher grávida e o filho pequeno. Só recebeu algum tipo de explicação sobre o 'recrutamento' e a batalha alguns meses depois, às vésperas de embarcar para o Acre.
Além do arrastão de jovens em idade militar, que tinham de escolher entre ir para o front, na Itália, ou 'cortar seringa' na Amazônia, o Semta fazia propaganda pesada - e enganosa. Contratou o artista plástico suíço Pierre Chabloz para criar cartazes que eram espalhados por todos os cantos, alardeando a possibilidade de uma vida nova na Amazônia, 'a terra da fartura'. Padres, médicos e outros líderes comunitários ajudavam a fazer correr, boca a boca, as notícias sobre um lugar onde se 'juntava dinheiro a rodo'. O Semta oferecia um contrato que previa um pequeno salário para o trabalhador durante a viagem até a Amazônia e, lá chegando, remuneração correspondente a 60% do que fosse obtido com a borracha.


VIDA BRASILEIRA

Exército - continuação

PAULA MAGESTE (texto)
MAURILO CLARETO (fotos)
''Embora tenham sido iludidos, os migrantes tinham sua própria agenda. Queriam uma vida melhor''
LÚCIA ARRAIS MORALES, da Universidade Federal do Ceará
Da boca do presidente Vargas, em discurso inflamado, os nordestinos ouviram que eram tão importantes no esforço de guerra quanto os pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB) que iam para Monte Castello. Ouviram também que o seringueiro mais produtivo do ano seria premiado com a bolada de 35 mil cruzeiros. Iludidos, jovens e até mesmo famílias inteiras se alistavam. 'O pai não estava interessado no dinheiro', conta Vicência Bezerra da Costa, de 74 anos, nascida em Alto Santo, no Ceará, e agora dona de um restaurante caseiro em Xapuri. 'Ele queria que a gente fosse para um lugar que tivesse água, onde a plantação vingasse.' Ela com 13 anos, mais o pai, a mãe e sete irmãos começaram um êxodo que durou 11 meses.
Da caatinga, os 'recrutas' seguiam de trem e navio até os pousos construídos nos arredores de Fortaleza, Manaus e Belém. Nessas hospedarias, conhecidas como campos de concentração, recebiam um presente de Getúlio Vargas: o enxoval de soldado da borracha, composto de calça de mescla azul, blusa branca de morim, chapéu de palha, um par de alpercatas, caneca de folha-de-flandres, um prato fundo, um talher, uma rede e um maço de cigarros Colomy. Um exame físico e a assinatura do contrato com o Semta transformavam o agricultor em empregado, ganhando salário de meio dólar por dia até o embarque para Boca do Acre, onde os seringalistas vinham escolher seus trabalhadores - quase como num mercado de escravos.
Na viagem de navio, além da superlotação e do tédio, os migrantes enfrentavam o medo do ataque dos submarinos alemães. 'Um dia mandaram nos chamar no porão, onde ficavam nossos beliches, e ir para o convés, com aqueles coletes apertados. A gente não podia dar nem um pio nem acender fogo. Os caça-minas acompanhavam a gente. Minha mãe tirou as medalhas do pescoço e rezou sem parar. Minha irmãzinha de 4 anos não parava de chorar', recorda Vicência. No bolso do colete, água e biscoitos (caso o navio afundasse) e uma cápsula de cianureto (se o inimigo os capturasse).
''A guerra foi ganha com a nossa borracha. Merecemos indenização dos EUA''
AGUINALDO DA SILVA, 77 anos,
de Rio Branco
O soldado da borracha já chegava endividado ao seringal. O seringalista anotava cada centavo que gastava com o trabalhador: comida, roupa, arma, material de trabalho e remédio. Opreço das mercadorias no barracão do patrão era pelo menos o dobro do praticado nas cidades. Opagamento era feito com a produção de borracha - que, essa sim, tinha a cotação lá embaixo. Além da matemática que não fechava, o soldado enfrentava doenças tropicais, animais selvagens e a dificuldade de se orientar na selva, até mesmo de reconhecer uma 'seringa'. A realidade era muito diferente do que pintavam os cartazes de Chabloz: nada de seringueiras geometricamente enfileiradas, esperando para ser cortadas. 'Quando chegamos na colocação, papai ficou uns dois meses cuidando de construir a casa', conta Raimundo Alves da Silva, de 73 anos, do Rio Grande do Norte. Seu Flausino, como é conhecido, foi companheiro de Vicência na viagem de barco para o Acre e agora é seu vizinho em Xapuri. 'Eu é que ensinei papai a cortar seringa; ele fez tudo errado no primeiro dia.'
A guerra acabou, os seringais da Malásia foram liberados e os soldados da borracha abandonados no front. Na época, os 25 mil sobreviventes do inferno verde não receberam nada do prometido - nem a passagem de volta para casa. Muitos estavam tão endividados com os patrões que tiveram de seguir cortando borracha. Outros, como seu Lupércio, prosperaram e fizeram da Amazônia sua casa. 'Quando vou ao Ceará visitar meus parentes, sonho com estas matas daqui', diz. 'Tudo o que tenho foi à custa da seringa, não do governo. Porque o americano pagou, mas Juscelino construiu a nova Brasília e a ''trança amazônica'' com nosso dinheiro', acredita. Na década de 80, ele foi à Malásia ensinar o corte amazônico aos produtores. 'Se a mulher topasse, eu estava lá.'
Uma última batalha ainda está sendo travada, com igual desconhecimento da população. Desde 1988 os soldados da borracha têm direito a pensão vitalícia de dois salários mínimos por mês. Eles são 12 mil e pedem a equiparação de direitos com os pracinhas, que recebem dez salários por mês mais 13o. Se aprovada pelo Congresso, a medida representará um aumento de R$ 23 milhões mensais nas despesas do governo. 'Esse negócio está demorando tanto que quando sair não vai mais servir; vamos estar mortos', lamenta Vicência. Mais radical é o acreano Aguinaldo Moreno da Silva, de 77 anos, que não foi soldado da borracha, mas trabalhava nos seringais. 'Temos de ser indenizados pelos Estados Unidos, porque eles ganharam a guerra com a nossa borracha', inflama-se. 'Os jovens de lá tiveram um Plano Marshall, um incentivo de reconstrução. E aqui, o que nós tivemos?'

  
BORRACHA PARA A VITÓRIA
Documentário de Wolney Oliveira deverá estrear no
14º Cine Ceará, em junho

MAKING OF.
Oliveira e dois ex-combatentes: 50 horas de gravação
Produzido a partir de um prêmio de R$ 70 mil e de vários apoios regionais, o documentário Borracha para a Vitória vai misturar depoimentos de sobreviventes da Batalha da Borracha e material de arquivo. Depois da estréia especial no festival de cinema do Ceará, em junho, o filme de 55 minutos será exibido na TV Cultura a partir de julho. Wolney Oliveira, que estudou Cinema em Cuba e fez outros dois documentários, Sabor a Mi e Milagre em Juazeiro, gostou tanto do tema da borracha - tem 50 horas de material gravado - que pretende produzir também um longa de ficção que envolve quatro Estados (Amazonas, Rondônia, Pará, Acre). O orçamento estimado é de R$ 5 milhões.



VIDA BRASILEIRA

Documentos jogam luz na história

PAULA MAGESTE (texto)
MAURILO CLARETO (fotos)

HISTÓRIA DESCONHECIDA
O Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, e o
Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (Mauc)
guardam documentos e fotos da época

PIERRE CHABLOZ Autor dos cartazes de propaganda, o artista plástico suíço era contratado do Semta. Também fez várias das fotos em arquivo. Seu diário de campo tem desenhos detalhados do que acreditava serem os quatro biótipos básicos do homem nordestino
VIDA BRASILEIRA

Depoimento - Lupércio Freire Maia

PAULA MAGESTE (texto)
MAURILO CLARETO (fotos)

83 anos, nascido em Morada Nova (CE) e
atualmente morador de Rio Branco (AC)
A Alemanha queria o mundo todo para ela. O americano enfrentou, mas não tinha muita potência que nem hoje. Então pediu auxílio à Rússia, que negou. Getúlio Vargas achou que era uma fraqueza da Rússia, um país daquele tamanho, deixar a Alemanha tomar conta do mundo. E mandou as tropas brasileiras para lá. A gente tinha que escolher: ou a linha de frente ou o Amazonas, como soldado da borracha. Eu perguntava para meu primo Raimundo como era esse tal de Amazonas. Ele dizia que tinha um bicho que engolia dez homens de uma vez e ainda ficava chorando. Eu achei aquilo besteira, e quando chegou minha vez na fila escolhi ser soldado da borracha. Raimundo preferiu ir para Monte Castello. Morreu por lá. Chegamos em Belém e um major americano nos recebeu. Rapaz, como tinha gente lá. Eles queriam crescer a base. A gente pegava um trem, ia quebrar pedra e voltava com elas na cabeça. Depois de dois meses, embarcamos para Ponta Pelada, em Manaus. O capitão dizia que não tinha jeito de fugir. Muita gente chorava, com saudade de pai e mãe, com medo dos bichos. Eu fiquei animado com o dinheiro. Quantos ''merréis'' não seriam para eu receber quando acabasse a guerra? Era muito dinheiro. Cheguei no Acre em 1943, com oito meses de viagem e 21 anos. Seringalistas vinham pegar a gente. Os nativos ensinavam a cortar seringa. Eu nunca tinha visto nem seringa nem tanta água na vida. No seringal só tinha homem, cabra novo, de 16 até 30 anos. As famílias ficavam nos pousos. Fazia festa homem com homem, dançava a noite todinha - mas de longe, sem agarração. Começava no São-João e acabava no São-Pedro. Eu tinha um 44 novinho. Matava macaco, onça, cobra. E anta e veado para comer. As doenças a gente curava com um comprimido chamado ''tiro seguro'', que servia para febre, verme, pereba. Não tinha penicilina, não tinha nada. Não era todo patrão que pagava. Tinha uns que mandavam o capanga pegar a borracha e matar o cabra. A guerra se acabou e eu só fiquei sabendo em 1946. E nosso dinheiro? A gente queria ir embora para o Ceará. Viajamos cinco dias para ir do seringal à margem do Rio. O coronel disse que não decidia nada, só Getúlio. E mandou a gente voltar para dentro e cortar seringa. Mudou o presidente, mudou tudo, e não chegou notícia nenhuma para nós.









VIDA BRASILEIRA

Depoimento - Afonso Pereira Pinto

PAULA MAGESTE (texto)
MAURILO CLARETO (fotos)

79 anos, de Areia Branca (RN), hoje em Xapuri

SEQÜELAS
Afonso Pinto perdeu uma das vistas com uma 'pancada de vento' e uma perna por 'enfermidade'
Papai queria que eu viesse cortar seringa para não ir para a guerra. Mamãe não queria de jeito nenhum. Na hora que a gente se alistava, diziam que aqui se juntava dinheiro com rodo. Tudo era fácil. Só que, quando nós chegamos, além de cortar seringa, ainda tinha que abrir estrada. Eu me alistei e embarquei para Fortaleza. Passei dois meses lá. Só tinha homem no pouso. Aí peguei um carro de boi para Teresina e depois um trem para o Maranhão. Passei outra temporada lá e peguei o navio para Belém. Na Baía de Marajó o navio encostou e pegou cento e tantos bois, que era para nós comer. Passei quase dois meses dentro do navio e peguei uma chatinha para Boca do Acre, um batelão para Rio Branco e outro para São Francisco. Nunca gostei de cortar seringa, mas não tive preguiça. A gente era perseguido. Não podia vender um principiozinho de borracha fora que a polícia vinha atrás, pior que ladrão. Um dia, peguei uma pancada de vento e perdi essa vista. Era bem novinho. Depois, peguei uma enfermidade e perdi a perna. Quando acabou a guerra, não tinha dinheiro para voltar para casa. Agora estou por aqui, aleijado, quase cego, mas bem de vida, graças a Deus. Ganho dois salários, e ainda ajudo quem precisa.
















VIDA BRASILEIRA

Depoimento - Vicência Bezerra da Costa

PAULA MAGESTE (texto)
MAURILO CLARETO (fotos)

74 anos, nascida em Alto Santo (CE) e moradora de Xapuri

SAUDADE
Dona Vicência guarda a foto dos pais e a imagem do Padre Cícero
Minha mãe vendia cocada e tapioca. O pai colhia algodão. A gente chegava da aula e ia para o roçado ajudar ele. Na seca, a gente apanhava oiticica, enchia as latas e vendia. O pai quebrava pedra. Aí veio essa história de soldado da borracha, que tinha transporte e hospedaria para botar o pessoal. Meu pai se animou, mas mamãe não queria. OSemta levou meu irmão. Eles juntavam aquele rodo de rapaz e levavam. Minha mãe chorava, e então nós resolvemos ir. Eu tinha 13 anos. Em 1942, fomos para Fortaleza. O pouso não estava pronto. A gente comia e esperava, e cantava hinos glorificando Getúlio. Tínhamos café, almoço, roupa de americano. Ganhei um vestidão. Quase embarcamos para a Amazônia várias vezes, mas meu pai ficou doente; aí os alemães botaram um navio a pique. Demoramos quase um ano para chegar no Acre. Na viagem, compusemos o hino do soldado da borracha: (...) Destemido soldado brasileiro, seu produto servirá o mundo inteiro. Nós viemos fazer borracha para a guerra. A gente tinha de ter força para trabalhar e vencer, como vencemos. Meu pai também queria que a gente viesse para um lugar que chovesse, onde plantasse e desse tudo. Chegamos na Boca do Acre em dia de Finados. Ficamos dois meses. Aí veio a chata que nos trouxe para Rio Branco. Arrumamos um patrão que nos levou para o seringal. Em 28 de março de 1944 chegamos na colocação. Morei no seringal 34 anos. Tive hepatite, meus olhos ficaram cor de açafrão. Combatia com chá de alfazema, pois no seringal não tem médico. Só não estou mais lá porque meu esposo morreu. Gostava de andar na mata, trabalhar no roçado, amanhecer o dia dando de comer a porco e galinha. Pegar castanha. Eu não tenho o que dizer da mata. A gente fazia 3 mil quilos de borracha. Além disso, eu era a banqueteira da selva. Batizado, casamento, festa no barracão do patrão - mandavam me chamar três dias antes. Agora, quero ir para Manaus, descansar. Essa aposentadoria de R$ 480 não paga o nosso sacrifício.





VIDA BRASILEIRA

Depoimento - Alcidino dos Santos

PAULA MAGESTE (texto)
MAURILO CLARETO (fotos)

79 anos, de Afrânia (PE)

HUMILHAÇÃO
O primeiro patrão de Alcidino dos Santos queria que ele carregasse carga. 'Disse que não era burro nem jumento'
Eu cheguei no Acre e perdi meus documentos numa alagação. Passei um telegrama para ver se meu ''batistéu'', lá de Pernambuco, podia vir fazer tudo de novo. Mas não teve jeito de continuar filho da minha terra. Tive que me naturalizar acreano. Eu fui ''alistrado'' com 18 anos, por um decreto do presidente Getúlio Vargas. Ou a gente vinha para cortar seringa ou ia para os campos de batalha. Sendo assim, eu exigi vir para cá. Minha família ficou chorando. Minha mãe pedia que eu não viesse, pelo leite que eu mamei nos peitos dela. Mas um capitão me ''alistrou'' e fui para o Ceará. Tratavam bem da gente no pouso. Bastava uma dor na unha para ter medicamento. Comida boa, dormida boa. No correr do dia, a gente fazia instrução. Mas só aprendi tiro aqui no Acre, para matar onça. A gente comia da boca da arma. Em Manaus, o patrão vinha nos tirar. Fui para o Rio Taruacá, Vila Seabra. Eram quatro casinhas. Fiquei só três meses lá, porque o patrão queria humilhar a gente, fazendo carregar peso fora do limite, que nem animal. Eu disse não, não sou burro nem jumento. Aí fui para outra colocação. Tirei 35 anos lá. Fazia 1.700 quilos de borracha todo ano, tinha roçado, casa de farinha. Tinha que gostar de lá, porque não tinha para onde ir. O presidente Vargas dizia que quando a guerra terminasse ele ia retornar nós para nossas famílias. Mas esse trato não foi cumprido


quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Pesquisadores da UFPA lançam livro sobre os ex-combatentes da Amazônia

Como tenho o intuito de divulgar sobre a Segunda Guerra Mundial e a colaboração brasileira aproveito para indicar o lançamento de um livro que trata sobre os pracinhas. 

 

 

Pesquisadores da UFPA lançam livro sobre os ex-combatentes da Amazônia

 
Pouco tem sido documentado sobre a história dos ex-combatentes brasileiros e menos ainda sobre a atuação dos “pracinhas” amazônidas na II Guerra Mundial. Por isso, entre 2010 e 2012, os pesquisadores e alunos do Laboratório de Estudos Bioantropológicos em Saúde e Meio Ambiente (Lebios) da Universidade Federal do Pará (UFPA) realizaram um intenso trabalho de busca e entrevistas com os últimos remanescentes dos pracinhas paraenses, os quais somam apenas cerca de duas dezenas, com, atualmente, uma média de idade de 90 anos. Os pesquisadores entrevistaram, ainda, outras pessoas que tiveram participação ativa na Guerra. Tudo para traçar um perfil da realidade vivida na região entre 1939 e 1945.
 
Mosaico - O resultado é um rico mosaico de experiências inéditas, que deu origem ao livro e ao vídeo documentário  Por Terra, Céu e Mar: História e Memórias da Segunda Guerra Mundial na Amazônia. As publicações trazem, também, dezenas de fotografias inéditas cedidas pelos entrevistados, além de imagens históricas de arquivos públicos e privados. O livro será lançado nesta quarta-feira, 29, às 18h, na livraria da Fox, localizada na travessa Dr. Moraes, 584, Batista Campos, Belém.
 
Da Amazônia para a guerra, na Europa - Por meio de uma abordagem antropológica e histórica, o livro e o vídeo relatam as experiências de vida dos amazônidas, muitos dos quais, antes, sequer haviam saído do seu município e de repente se veem no Velho Continente, no meio de milhares de outros jovens, de todo o Brasil e de dezenas de nacionalidades, com o ideal de mostrar que um brasileiro não foge à luta.
Os autores apresentam o quase esquecido Contingente da Amazônia, que embarcou para a Itália com o 5º Escalão da Força Expedicionária Brasileira (FEB), e também as aventuras e desventuras de outros soldados e oficiais da Marinha de Guerra, Mercante e da então nascente Aeronáutica, que participaram de diversas frentes, e nos escalões anteriores, muitos indo para o combate em Monte Castelo, Montese e outras importantes batalhas no front dos Apeninos.
 
O livro e o vídeo prestam uma justa homenagem aos últimos ex-combatentes e apresentam o Contingente da Amazônia e os diversos aspectos da Guerra na Região Norte, a partir do olhar daqueles, diretamente, envolvidos no conflito.
 
Serviço:
Lançamento do livro e do vídeo Por Terra, Céu e Mar: História e Memórias da Segunda Guerra Mundial na Amazônia
Data: 29.01.14, quarta-feira.
Local / hora:  Às 18h, na livraria da Fox, localizada na travessa Dr. Moraes, 584, Batista Campos, Belém.
Veja
aqui o trailer do vídeo Por Terra, Céu e Mar: História e Memórias da Segunda Guerra Mundial na Amazônia
Texto e arte: Divulgação

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Texto: A seca, o sertanejo e a ginástica sueca na II batalha da borracha (1942-1945)



A seca, o sertanejo e a ginástica sueca
na II batalha da borracha (1942-1945)
 

Mestre em Educação Brasileira- Faced/UFC
Professora de Educação Física-UVA
 

Ariza Maria Rocha Lima
arizarocha@zipmail.com.br
(Brasil)
 
 
 
 

Trabalho apresentado no In. CAVALCANTE, Maria Juraci Maia et al.
História e Memória da Educação no Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2002.

 
 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 58 - Marzo de 2003




1 / 1
    Podemos ver o corpo humano como uma obra inacabada, se considerarmos a diversidade de abordagens para o seu estudo. Uma delas é tentar apreendê-lo numa perspectiva histórica, que situa o corpo no contexto educacional, político, econômico e cultural em que o mesmo se encontra. Essa leitura possibilita conhecer as interpretações e os registros de uma história impregnada de significados, signos, valores, leis, crenças, sentimentos, imagens, mitos e comportamentos, pois, ao mesmo tempo em que são tatuadas as suas marcas hereditárias, culturais e históricas, o corpo é o locus da produção da identidade e, como tal, se torna alvo das relações de poder e saber.
    Sob formas de controle e vigilância através dos regulamentos, códigos e saberes que disciplinam e corrigem as operações do corpo, podemos conhecer a história dos soldados nordestinos levados à Amazônia pela propaganda e discurso ideológico do governo de Getúlio Vargas, durante o Estado Novo, para atender à necessidade político-econômica de garantir a produção de borracha aos Aliados na II Guerra Mundial.
    Encontra-se naquele episódio um propósito de reforma do corpo, na sua forma e condição humana, não apenas pelo aspecto da educação militar que envolve disciplinamento, controle e repressão, mas por sua pretensão de desencadear uma reforma social.
    A indagação que originou este ensaio surgiu da curiosidade de saber por que os soldados da borracha, antes de irem para Manaus, faziam ginástica dirigida pelos militares, no contexto da seca de 1942, sabendo-se que o contingente recrutado era constituído pelos mais jovens, que eram selecionados por apresentarem melhores condições físicas e saúde. Acostumados a cuidar do gado, cultivar as lavouras e a subir em coqueiros e carnaubeiras, por que os sertanejos precisavam submeter-se a exercícos físicos, que foram criados para combater o sedentarismo de segmentos humanos socialmente afastados de atividades que demandam desgasto físico do corpo?
    O que pretendemos aqui é fornecer, em largas linhas, uma discussão sobre o corpo do soldado da borracha na forma como foi representado, desenhado e idealizado como projeto do Governo de Getúlio Vargas e percebido em depoimentos de alguns ex-soldados, na literatura, de cordel e de ficção nas matérias veiculadas nos jornais e alguns estudos historiográficos

De flagelados da seca a soldados da borracha na amazônia
    Durante a II Guerra Mundial, os países aliados entraram em pânico quando a Malásia e a Ilha de Borneo foram invadidas pelas tropas japonesas. Tal ação significava que o mercado oriental estava fechado para os aliados, o que representava um corte brusco em 97% de suas fontes de suprimentos, entre eles, a borracha, a Hévea brasiliensis.
    As preocupações dos Aliados, principalmente dos EUA e da Inglaterra12, intensificaram-se23 com a crise da borracha34. Desesperados, os americanos adotaram algumas medidas tais como: maior controle de estoques, racionamento e suspensão da venda de carros pela falta de pneus. Além disso, organizou uma comissão especial para solucionar o problema, pois, além dos carros civis e bélicos, a produção de calçados, isolantes, cinturões, peças para rádio e telefones seria afetada.
    Assim, em meio à urgência de encontrar uma solução, o governo brasileiro, através de um "boletim informativo", apontou a saída: " a existência de 300 mil árvores da Hévea brasiliensis, mais conhecida como seringa, espalhadas por toda a Amazônia" (O Povo, 21/6/1998). Tal notícia significava "um potencial de 800 mil toneladas anuais, numa área de quase um milhão de milhas quadradas, incluindo o Brasil, Peru, Bolívia e Colômbia. A metade dessa produção já resolveria a crise dos Aliados" (O Povo, 21/6/1998). A borracha era uma necessidade prioritária para a guerra, emergindo daí o pacto:
...Enquanto eles arcavam com o ônus maior, envolvendo-se diretamente no conflito, o resto da América devia participar do esforço de guerra, no fornecimento de matérias-primas à indústria bélica e na manutenção da ordem interna, para se evitar alterações nos compromissos políticos e econômicos assumidos (O Povo, 21/6/1998).
    Tal pacto ficou conhecido como os Acordos de Washingto45. O presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, e o presidente do Brasil, Getúlio Vargas, assinaram os planos para a "operação de guerra" que iria ser travada na Amazônia. Estava traçada a Batalha da Borracha, assim nomeada em alusão à função que a produção de borracha tinha numa conjuntura de guerra.
    O plano era de obter o máximo de borracha, em um mínimo de tempo. Para tanto, se fazia necessário o recrutamento de mão-de-obra para essa batalha. Os "soldados da borracha", como foram chamados, seriam heróis de guerra tão importantes, quanto aqueles que estavam nas frentes de combates da II Guerra Mundial, pois, o exército da borracha teria a missão vital de salvar os países aliados do colapso, face à falta da borracha para a indústria bélica. Com base nessa idéa é que foi construído o discurso e a propaganda de valorização do "Soldado da Borracha", para sensibilizar a opinião pública nacional e motivar os sertanejos pra o recrutamento.
    Para organizar, orientar e fiscalizar a operacionalização do referido programa, em cooperação com o governo brasileiro, em cumprimento à sua parte no pacto, a Rubber Development Corporation instalou-se no Brasil e assumiu o comando do planoque possibilitaria ao governo americano a obtenção do látex amazônico. Para tanto, de acordo com os cálculos dos técnicos americanos, faltava a mão-de-obra, pois,
...Em toda a região Amazônica, deveriam restar apenas 35 mil seringueiros, remanescentes do primeiro ciclo da borracha. Era preciso trazer, e urgente, mão-de-obra para a extração de látex suficiente para resolver a carência dos países Aliados. Em troca, o Brasil tinha a promessa de ver resolvida uma lista de pendências: 20 tanques leves, 100 tanques de porte médio, quatro metralhadoras antiaérea e ainda US$ 200 milhões para equipamentos militares...(O Povo, 21/6/1998).
    Enquanto isso, ocorria a seca de 1942, castigando os cearenses. Como sempre ocorrera em períodos anteriores de seca, a fome, a miséria e a morte se confrontavam com os sonhos da abundância, riqueza e água; ameaçando a classe social abastada pelo crescimento do número de mendigos, flagelados, epidemias, prostitutas e crimes nas ruas da cidade de Fortaleza. A solução consistia na rotineira decisão de descongestionar a cidade, mandando os flagelados da seca para outras regiões, como ocorrera na I Batalha da Borracha, quando foram enviados para a Amazônia. No entanto, com a repetição do flagelo, essa viagem, que antes era forçada, passou a ser decidida no sertão, pois, o retirante tinha as seguintes opções: a mendicância na capital, a II Guerra Mundial, a floresta da Amazônia ou a seca no Ceará.
    Por um decreto-lei de fevereiro de 1943, Getúlio Vargas encorajava56 os sertanejos pobres a colaborar com o Brasil naquela luta patriótica, tornando-se Soldados da Borracha; em troca, além do dever cívico e patriótico, ele seria conhecido como o herói da Pátria e receberia uma viagem de caminhão, trem e navio por mais de cinco mil quilômetros até o "El Dorado", além do prêmio67 para aquele que conseguisse extrair mais "ouro branco",e ficavam "isentos" do serviço militar. As famílias dos voluntários, também, seriam amparadas, com alimentos, escolas e assistência médica. E mais:
De acordo com o plano, os sertanejos recrutados, por ocasião da estada temporária nas Hospedarias governamentais, receberiam assistência alimentar e médica, intensivas. Teriam todas as despesas pagas e às suas famílias, seriam assegurados recursos para que pudessem sobreviver durante as suas ausências. Havia, ainda, a previsão de assinatura de contratos legais para os trabalhadores e de assentamento posterior com suas famílias para efeito de povoamento da Amazônia (Cavalcante, 1993: 48).
    Além dessas promessas, o voluntário que ia ser o soldado da borracha recebia, como presente de Getúlio Vargas o seguinte enxoval:
Uma calça de mescla azul, uma blusa de morim branco, um chapéu de palha, um par de alparcatas de rabicho, uma caneca de flandre, um prato fundo, um talher, uma rede e uma carteira de cigarros Colomy. No lugar da mala, um saco de estopa (O Povo, 21/6/1998).
    Cavalcante (1993), pesquisando as notícias sobre o assunto nos jornais da época78, encontrou estampado nas primeiras páginas o clima de euforia "dos simpatizantes do plano do ditador Getúlio Vargas". À seguir, encontra-se um exemplo do espírito da empolgação daquele momento em artigo publicado por um jornal local e assinado por Murilo Mota,
A Guerra no extremo-oriente provocou a crise no fornecimento da borracha de que têm necessidade as indústrias norte-americanas.
Todo esforço industrial dos EstadosUnidos gira agora fóra do seu eixo habitual, da fabricação de objetos de fins comerciais, havendo enveredado para o de produção intensiva do material necessário á guerra. Em vez de automóveis, tanks.
A borracha é hoje em dia considerada o produto vegetal de maior aplicação no campo das indústrias. Afirmam os técnicos de economia, sem temor das cifras astronômicas que superam a 40 mil as utilizações atuais da preciosa goma elástica. (...)
Os Estados Unidos consomem da produção brasileira apenas cerca da metade ou seja, aproximadadmente, 10 mil toneladas por ano. No entanto, como já acentuamos, o consumo de uma semana nos Estados Unidos sobe atualmente a cerca de 40 mil toneladas. Por isso se pode ver quão largas e radiosas são as perspectivas da borracha brasileira na presente crise mundial, em que os portos do oriente se interditaram ao comércio americano. Cabe ao nosso governo tomar, sem perda de tempo, as providências necessárias ao acautelamento dos nossos interesses.
Se essas providências derem certas, preparem-se, desde já os cearenses para lavar novamente cavalo com cerveja e acender cigarros com cédulas de 500 mil réis (Murilo Mota, Jornal Correio do Ceará, 22/01/1942, In Cavalcante, 1993: 46-47).
    Além do governo federal, o trabalho de convencimento ao sertanejo era feito por aliciadores profissionais, a mando dos patrões-donos de seringais no Amazonas, como também por padres89, médicos e advogados, jornais e os cartazes de Chabloz910. Entre morrer de fome ou morrer na guerra, fosse em campos nacionais ou internacionais, muitos fizeram a troca da seca dos sertões pelas chuvas do Norte.
    À caminho do Amazonas, de caminhão, trem e navio, os arigós saíam dos mais diversos interiores, tais como Sobral, Quixadá, Iguatu, Crato e outros. A viagem, às vezes, durava três meses e os soldados eram obrigados a passar pelas mais diversas privações, tais como: as péssimas condições sanitárias-alimentares, maus- tratos, doenças e o perigo dos ataques de submarinos alemães.
    Um órgão, o Serviço de Navegação e Administração dos Portos do Pará (SNAPP), ficou com a responsabilidade do transporte dos soldados voluntários e que foi calculado, nas "contas do ministro da Mobilização Econômica para o Esforço de Guerra, o tenente-coronel João Alberto Lins de Barros, a US$100 por cabeça " (O Povo, 21/6/1998).
    Quando o transporte demorava, significava que os alojamentos construídos para receber os soldados estavam com problemas de lotação em apressadas construções para alojar o elevado número de homens, gerando reclamações das condições destes lugares e muitas vezes conflitos, como ocorreu no Maranhão, como podemos observar no trecho abaixo,
No pouso do Maranhão, por exemplo, a comida ruim causou um motim. Zé Doutor, um amigo de João Amaro, foi morto por um soldado da guarda por causa da reclamação na hora do almoço. Revoltados com oassassinato, cerca de dois mil homens se rebelaram e foram a pé de Maracanã a São Luís, no Maranhão. Quase uma hora na estrada. O exército levou metralhadoras para acalmar o pessoal. O negócio era botar a tropa toda, e rápido, num navio para Belém. Mas nem sempre isso era possivel. O que normalmente acontecia eram longos e enervantes dias de convivência em pousos, nas cidades com postos de baldeação...(O Povo, 21/6/1998).
    Se, para o Departamento Nacional de Imigração, esses conflitos tinham jeito de motim, para a população local, era arruaça e muitos passaram a chamar os arigós de " vagabundos, de come-e-dorme, temidos, com suas peixeiras e, mais tarde, facas jebond" (O POVO 21/6/1998). Assim, para abrigar tanta gente, às vezes mil em único dia, o jeito foi construir uma hospedaria-modelo, como por exemplo, a conhecida Getúlio Vargas, perto da igreja São Judas Tadeu, no bairro Olavo Bilac, zona Oeste de Fortaleza. A idéia era construir 40 pontos de pouso para alimentacão, banhos e dormida, além de inspeção e assistência médica1011. Nesses alojamentos exigiam-se disciplina e obediência ao chefe, pois entre os cercados de arames e vigias, era este que controlava e autorizava a saída dos voluntários soldados da borracha, pois, as liberações para um passeio na cidade representavam problemas com a população.
    Uma operação grandiosa, como o recrutamento, organização, controle, transporte, alojamento e fiscalização de tantos retirantes em um curto espaço de tempo para uma distância tão grande só foi possível sob uma firme disciplina militar.
    No Vale Amazônico, passaram de homens livres a escravos, pois, já chegavam devendo ao patrão, coronel-seringalista; além da dívida interminável, o soldado devia ao seringalista obediência, respeito e a própria vida. A exploração nos preços dobrados era garantia de aumento da dívida.
    O patrão escolhia os mais fortes para trabalhar em seus seringais e registrava tudo o que gastava com os migrantes, desde a comida, a roupa, a arma, o material de trabalho, o transporte, o remédio até o suprimento da carência de mulheres naquela região. Jogados no meio da mata tinham que conviver com a malária, febre amarela, beribéri, icterícia e ainda ferimentos ou problemas de saúde decorrentes da intensa e árdua atividade:
... de madrugada, o arigó deixa a palAfita (o barracão), contruída em meio a floresta, para percorrer as "estradas de seringais". No caminho, ele vai cortando árvores, encaixando tigelas para aparar o látex e só depois volta para recolher a produção do dia. A espingarda pode salvá-lo de uma emboscada de índio ou de fera. O lampião, acoplado na cabeça com um suporte de alumínio, clareia o caminho ainda escuro. A faca sangra as árvores sem pertubar a produtividade...( O Povo, 21/6/1998).
    A migração de um expressivo número de retirantes chamou a atenção da cidade de Fortaleza e eram freqüentes nos jornais as notícias da "leva dos flagelados", tais como a que segue:
MAIS UMA LEVA DE FLAGELADOS SEGUIRÁ 5ª FEIRA PARA O NORTE
700 PESSOAS EMBARCARÃO PARA A AMAZÔNIA
O Ceará continua a mandar para fora os sertanejos vitimados pela sêca. Por último, os embarques se sucedem quasi consecutivamente. É que temos milhares e milhares de sertanejos, sofrendo os horrores da fome e da negra miséria, espalhados pelos sertões, sem os auxílios e serviços de emergência dêem para todos. Só há uma alternativa e esta é a de enviá-los, em massa, para fóra, principalmente, para a Amazônia, contribuindo, assim, o Ceará, para a realização do plano do governo federal de colonizar aquele vastíssimo trecho do território brasileiro com elemento essencialmente nacional. Por outro lado, contribue o nosso Estado para a intensificação do plantio e extração da borracha, agora que o Brasil se prepara para cumprir os acordos financeiros celebrados com os Estados Unidos, relativos ao aumento da produção daquela matéria prima para abastecimento da grande nação do norte, ora envolvida na luta contra as forças da tirania e da opressão (Jornal Correio do Ceará, Fortaleza, 15/06/1943 In Cavalcante, 1993: 46-47).
    Não se pode precisar o número de nordestinos enviados para tal operação com destino ao Amazonas, pois, além do recrutamento organizado pelo Governo Federal, havia ainda os aliciadores a mando dos coronéis-seringalistas, no entanto, segundo o jornal O Povo (21/6/1998), calcula-se que foi em torno de 55 mil homens entre o período de 1943 a 1947. Tal volume de gente sendo enviada para trabalhar em outro Estado despertou nos latifundiários locais uma preocupação com uma crise na agricultura. Tal preocupação foi estampada no Editorial de um jornal local da seguinte forma:
Tornamos hoje ao assunto da imigração. Não existe atualmente assunto mais oportuno, mais palpitante para o Ceará. Nossas reservas humanas estão se escoando pelo porto de Fortaleza, rumo à Amazônia.
Deveríamos acrescentar: as nossas melhores reservas humanas! Os flagelados, para serem conduzidos com destino aos seringais, são submetidos a um processo de seleção. Somente o homem forte, musculoso, sadio, é aceito para o trabalho; o Estado que fique com o rebutalho e cuide dêle.
Reafirmamos o nosso ponto de vista anterior: não somos contrários à emigração, mas favoráveis à limitação dela. Da mesma maneira como vem sendo feita, com uma capacidade de embarque de cerca de 3.000 pessoas pro mês, o Ceará corre o risco de enfrentar terríveis conseqüências futuras.
A solução que se deve dar ao amparo das massas atingidas pela sêca, não pode ter em vista apenas o presente, mas também o futuro. Livramo-nos de um peso agora para amanhã senti-lo redobrado, não nos parece bom procedimento. Sem que aos outros Estados nordestinos, também atingidos pela catástrofe climatérica, caiba o encargo de despachar sertanejos para a Amazônia, estamos nos despojando de nossas comunidades rurais, com uma prodigalidade que atinge as raias da dispersão.
(...)Os cearenses é que saem nos maiores contingentes. Em Fortaleza, e não nas demais capitais nordestinas, é que a Madeira-Mamoré manda recrutar trabalhadores para as sua estrada de ferro e os lavradores paulistas, jornaleiros para os seus cafezais. Nossa sangria avantaja-se ás demais, numa desproporção bem pronunciada. Por que não reduzimos o volume dos nossos embarques humanos? Será que não existe outra forma de encarar a situação criada com a sêca? Como cearenses não podemos suportar sem um profundo sentimento de tristeza, o espetáculo doloroso que nos advém desse desbarato das nossas comunidades sertanejas.
(...) Mas, se não embarcar os flagelados o que o governo vai fazer com eles?...(Jornal Correio do Ceará, em 26/6/1942 In Cavalcante, 1993: 50-51).
    Terminada a Guerra, a situação nos EUA se normalizou, conseqüentemente, o Brasil não precisava mais do seu exército de Soldados da Borracha e a vida voltou a sua rotina, ou pelo menos quase, pois, dos 55 mil homens enviados para a Amazônia, poucos conseguiram voltar para casa, além do que a distância entre as promessas e os discursos os soldados pagaram com seus corpos e vidas. Daquele período, Souza fez a seguinte análise:
Há apenas um intervalo nesses anos de doença e esclerose; o esforço de guerra em 1942, no sentido de aumentar o estoque de borracha dos aliados. Com a queda de 97% das áreas produtoras asiáticas nas mãos dos japoneses, os Estados Unidos, através de acordos com o governo brasileiro, desencadearam uma operação em larga escala na Amazânia: A "Batalha da Borracha". A operação provocou indícios e possibilidades de um retorno aos velhos tempos. Foram anos de euforia econômica, o dinheiro voltava a circular em Manaus e surgia até uma tímida especulação imobiliária, muito proveitosa, já que era bom negócio alugar casa para os funcionários dos diversos organismos que lidavam com a produção da Hévea.
Ao mesmo tempo que o país atravessava uma dura inflação, motivada pelo racionamento de bens de consumo devido à guerra. No Amazônas, novos empregos e bons salários começavam a ser oferecidos pelos diversos escritórios ligados aos investimentos públicos da Campanha da Borracha. Se bem que os gêneros alimentícios escasseassem, e um pequeno mas ativo mercado negro estivesse em franca atividade, havia uma distribuição controlada pelos americanos, impedindo que faltassem no mercado artigos de primeira necessidade. Os aviões americanos transitavam livremente e os amazonenses sentiam-se melhores e menos isolados.
Quando a guerra acabou e os americanos foram embora, a cidade caiu novamente no marasmo. De todos os investimentos federais voltados para o desenvolvimento da infra-estrutura e indústria-base, a Companha da Borracha é o único que não tem prosseguimento, cessando ao mesmo tempo que a guerra chega ao fim. A Campanha da Borracha não era, na verdade, um plano de valorização regional a longo prazo, embora assim se apresentasse, mas conseqüência do esforço de manter a demanda da borracha e outras matérias-primas da selva, em nível satisfatório às exigências do mercado internacional dominado pelos Estados Unidos. Depois de 1946, os seringais são novamente abandonados, para que os outros investimentos federais tenham prosseguimento, como a Usina de Volta Redonda e a Companhia Hidroelétrica do São Francisco, para somente citar dois exemplos. Mas, enquanto a festa durou, os provincianos se esmeraram na farsa. (...). O Amazonas abandonado era "A terra do futuro, o Vale da promissão na vida do Brasil de amanhã". Falava de "exploração nacional das culturas, concentração e fixação do potencial humano, pois a Marcha para o Oeste integraria a região "no campo econômico da nação, como fator de prosperidade e energia criadora"... (Souza,1977:144-146 In Cavalcante, 1993:59-60).

O corpo do arigó na história da Amazônia
    Na luta para recrutar o maior número de soldados possível, o Governo Federal abriu, também, postos de alistamento "com direito ao salário de meio dólar por dia e alojamento até a partida, a tropa vivia sob firme disciplina militar" (O Povo, 21/6/1998).
    A convocação para o recrutamento no exército da borracha destinava-se aos cearenses pobres. O governo federal apelava para os sentimentos cívicos e patrióticos, além dos valores "lendários do sertanejo", como por exemplo, identificando o vaqueiro, o aventureiro, o sertanejo com o "forte", " bravo" e "corajoso", o tipo ideal para defender a humanidade. Tais argumentos eram visíveis nos jornais, como por exemplo, o que segue abaixo, O Forte sertanejo cearense
Realmente, o sertanejo é normalmente um forte que se não pode comparar com esses verminados e jecas-tatus de certos estados que gozam de elevada e permanente pluviosidade. A principal indústria do sertanejo é a criação do gado bovino; e, para ser vaqueiro, a moda do nordestino, cumpre ser vigoroso. Para desbravar as matas amazônicas, colonizar toda a parte brasileira da bacia do rio-mar, "amansar a seringa", cercado de mil perigos ( de que o menor era o índio reacionário), para conquistar o Acre e resistir as secas tremendas, é indispensável ser forte, vigoroso de corpo e de alma.....(José Luiz de Castro, Correio do Ceará, 02/03/1942-p 9/10 In Cavalcante, 1993: 9).
    Nos desenhos de Chabloz, o estímulo para incentivar o recrutamento dos retirantes da seca; assim, vários mapas dos biotipos de nordestinos, que ajudariam na seleção dos candidatos e a decorar a publicidade dos caminhões foram criados. Nos cartazes, havia o desenho da anatomia de um homem normal chamado de Normolíneo que era comparado aos tipos de corpos nordestinos (Disgenopata, Mixotipo e Brevilíneo). Suas características eram:

O normolíneo apresenta pêlos e pescoço longo
a. Valor tronco= valor membro, valor torax=valor abdômem;
b. Os pêlos podem não serem abundantes, porém obedecem ao tipo de implantação masculina;
c. O pescoço é um tanto longo, única nota desharmonica, sob o aspecto morfológico;

Biotipos Nordestinos:
1-Disgenopata apresenta traços de inferioridade.
a. As dismorfias são elementos frequentes. Está aqui presente o joelho varo;
b. Existem outros sintomas de inferioridade; implantação feminina dos pêlos (cabeça e pube);
c. Também as faces deste indivíduo exprime uma inferioridade psíquica, que ele, de fato, um débil mental.
2-Mixotipo- tronco longo e pouco volumoso mais próximo do "normal'.
a. É também um tipo aproximadadmente central;
b. O tronco, apesar de longo não é tao volumoso;
c. Os membros inferiores são relativamente curtos.
3- Brevilineo- ventre proeminente, ausência de pêlos desvaloriza o tipo.
a. Ventre proeminente, ptósico;
b. Panículo adiposo mal distribuído;
c. A ausência de pêlos não tem valor aqui, por se tratar de um melanodermo.
    Com base nas fotografias referentes ao fato, observou-se que para corrigir o corpo do nordestino, considerado nos desenhos como "biotipos inferiores", os "Soldados da Borracha" faziam sessões diárias de ginástica. Constatou-se que, se tratava da ginástica sueca, pois, esta era dividida por objetivos a serem alcançados, destacando o caráter higiênico e a concepção anátomo-fisiológica do homem. Soares explicitou os objetivos da ginástica sueca na seguinte passagem:
a. Ginástica pedagógica ou educativa - aquela que todas as pessoas, independentemente de sexo ou idade e até mesmo, de condição material e social poderiam praticar. O seu mais elevado objetivo seria o de desenvolver o indivíduo normal e harmoniosamente, assegurando a saúde e evitando a instalação de vícios, defeitos posturais e enfermidades.
b. Ginástica militar - deveria incluir a ginástica pedagógica, acrescida de exercícios propriamente militares tais como o tiro e a esgrima cujo objetivo era preparar o guerreiro que colocaria fora de combate o adversário.
c. Ginástica médica e ortopédica - que também deveria estar baseada na ginástica pedagógica, visando eliminar vícios ou defeitos posturais e curar certas enfermidades através de movimentos especiais para cada caso encontrado.
d. Ginástica estética - que assim como as demais estaria baseada na ginástica pedagógica e, para além dela, procuraria o desenvolvimento harmonioso do organismo e seria completada pela dança e certos movimentos suaves os quais proporcionam beleza e graça ao corpo (Soares, 1994: 65).
    Para o exército da borracha eram selecionados os mais jovens e saudáveis e os requisitos eram os mesmos para o recrutamento dos soltados da Força Expedicionária Brasileira (FEB), como podemos observar pela matéria no jornal abaixo,
    Aberto, desde ontem, o voluntariado para preenchimento de cargos existentes(...) Serão exigidas as seguintes condições:
a. ser brasileiro nato;
b. Ter boa conduta comprovada;
c. Revelar aptidão física para o serviço militar
d. Estar entre 17 e 25 anos de idade;
e. Não ser reservista de 1º ou 2º categorias;
f. Não estar chamado para incorporação no Serviço do Exército ou da Marinha de Guerra;
g. Ser solteiro, ou viúvo, sem filhos (Jornal Unitário, Fortaleza 24.03.1943)
    Visando ao fortalecimento dos soldados, ficavam à "disposição dos soldados da borracha as quadras de esporte dos quartéis" (Jornal Unitário, 22/12/1942), além de um trabalho educativo sobre cuidados com o corpo-boa alimentação, higiene, exames médicos periódicos. Este trabalho educativo tinha as seguintes funções: primeiro, o interesse de que os voluntários tivessem boa disposição e saúde para o trabalho duro da extração do látex, mesmo que não fossem oferecidas tais condições. Segundo, a intenção era confundir a condição de trabalhador com a de soldado e os campos de trabalho passam a ser campos de batalha. Os termos exército, alistamento, recrutamento, soldado, batalha, guerra estão sempre presentes. Terceiro, o disciplinamento militar, presente desde o recrutamento como o transporte dos voluntários tem a seguinte doutrina:
Na doutrina do Exército, ser disciplinado é aceitar com convicção e sem reservas a necessidade de uma lei comum, que regule e coordene os esforços dos seus quadros. Por isso, a educação militar considera fundamental o princípio da disciplina, que é a completa submissão aos preceitos regulamentares e a obediência sem hesitação aos chefes,...Nesses termos, o Exército pode ser entendido como uma instituição de obediência e comando...(Ferreira Neto, 1999:39).
    Com este propósito, foram construídos os "Dez mandamentos" do exército da borracha, que são:
1. Cumpriremos as instruções que nos forem legalmente enviadas, sempre recebidas com entusiasmo, procurando produzir mais borracha, porque a extraordinária ação do Presidente Vargas, como uma voltagem de potencial infinito, tem o milagre e a força de contagiar todos os brasileiros para a unidade e a salvacão da Pátria;
2. Cumpriremos essas instruções, ingressando alegremente nas selvas, porque a palavra do Presidente Vargas, descendo do Catete e o nosso labor, subindo dos seringais, formam o mesmo hino da raça que distribui igualmente o seu sangue e os seus benefícios nos palácios, nas usinas e nas barracas.
3. Cumpriremos essas instruções, explorando e defendendo a imensidade das árvores, porque o presidente Vargas é um apóstolo da humanidade redimida, porque pertencemos aos 300 milhões de americanos que transformam o seu continente num Sinai, para as novas tábuas da lei e os novos decretos dos homem;
4. Prometemos convergir todos os nossos esforços na vitória da produção, certos que a nossa inércia seria uma traição aos Aliados que se batem pela liberdade, a irmãos que foram sacrificados pela vilania adversária, aos nossos aeronautas e marinheiros que exercem vigilância no litoral contra tocaias dos submarinos;
5. Prometemos trilhar diariamente as estradas das seringuerias, porque enquanto honramos os compromissos do Brasil que o Presidente Vargas firmou perante o mundo, também realizamos uma outra de economia, integrando o Amazonas à economia nacional;
6. Prometemos cumprir as ordens do governo da República, porque arregimentados como soldados, trabalhamos como homens livres, à luz de contratos assinados no Ministério do Trabalho com as garantias das leis sociais, benemerência do Estado Nacional;
7. Juramos permanecer nos seringais para o que formos designados porque são quartéis do Brasil e deles não sairemos, cometendo crime de deserção, como não sairíamos de uma frente de batalha;
8. Juramos vive em máxima harmonia e disciplina, ao lado de seringalistas e seringueiros veteranos, porque são soldados da mesma batalha brasileiros dos mesmos ideais porque descendem de pioneiros e desbravadores que soberam resistir e vencer, abrindo caminho para as investidas de hoje;
9. Queremos proclamar em juramento perante Deus, antes a Bandeira e o Hino da Pátria, o nosso espírito de sacrifício e lealdade ao presidente Vargas de quem cumpriremos as ordens, sejam quais forem as circunstâncias
10.                   Queremos tornar bem claro que, pela vida ou pela morte, tudo faremos e aceitaremos em bem do Brasil, do continente americano, das Nações Unidas, na guerra universal contra a tirania e a opressão (O Povo, 21/6/1998).
    Nos depoimentos de alguns seringueiros, publicados pelo jornal O Povo, encontram-se os versos de Raimundo de Oliveira, 68 anos, cordelista e ex-soldado da borracha, que sintetiza em versos a saga dos sertanejos:
A origem da minha viagem / a esta santa terra/ é porque em quarenta e três / O Mundo estava em guerra/ Foi a causa de tudo/ Que nesta História se encerra/Eu já ia para a guerra/ Já estava sorteado/ Mas havendo necessidade/ Para a borracha fui tirado/ O bem da Pátria também era/ Um bom serviço prestado/ Sou filho do nordestino, Natural do Ceará; vim embora para o Acre para a seringa cortar, produzir Borracha, ganhar dinheiro, para a sua Terra de origem um dia poder voltar/ (..) Fui seringueiro formado/ Vivendo com os índios em galhos de árvores trepado/ Comendo frutas silvestres/Comendo anta e veado./ O seringueiro é um homem forte/ De uma coragem tamanha/ Enfrenta onça e enfrenta cobra lá no alto / Da montanha, pensando no seu futuro / Corta de noite no escuro, mas, coitado, nada ganha/ (...) Hoje eu não corto mais. (Raimundo de Oliveira, cordelista, O Povo, 21/06/1998).

Considerações Finais
    Na história dos arigós, observamos a história do corpo em ligação com um projeto político, que nos revela o tratamento que as autoridades deram ao "corpo" do nordestino. Assim, nestas poucas páginas foi possível expor os "elevados objetivos" retóricos da política, as circunstâncias, as privações e as racionalizações, sob as quais o governo brasileiro enquadrou o corpo do soldado da borracha.
    As tentativas das autoridades políticas, religiosas e civis de regulamentar os corpos dos retirantes da seca através dos discursos, das promessas, dos exercícios e da coerção física eram direcionadas para reformar o corpo no nordestino. Isso significava uma intenção muito mais ampla de governar as pessoas, através do controle de seus corpos e nelas incutir a obediência física ou a educação como um processo diante de um estereótipo cultural profundamente estabelecido fosse, nos cartazes de Chabloz, na imagem que se fazia dos rudes nordestinos ou na representação lendária do nordestino.
    Os interesses higiênicos, embora muito alardeados, não eram o foco do governo federal, que visava apenas a submissão e a obediência, pois esta era a forma para assegurar uma melhor ordem moral e social; desse modo, através de punição corporal, o objetivo era policiar o corpo para sustentar um estado de guerra, associando educação e disciplina militar com a ginástica de inspiração médico-higienista e militar-nacionalista.
    Embora o Estado trabalhasse para produzir homens dóceis e uma força de trabalho obediente, através da disciplina sistemática dos corpos dos sertanejos, este mesmo corpo, também, tem sido signo de resistência, pois, apesar de muitas marcas e cicatrizes, o nordestino com a sua cultura desenvolveu sua linguagem corporal, através dos seus cânticos, poesia, folclore e forró, é uma atitude político-contestatória, apesar de muitos pesares.

Notas
1. "Primeiro a Inglaterra precisava de divisas para enfrentar a guerra. Em segundo lugar, os ingleses tentavam evitar com isto que os americanos montassem uma poderosa industria de borracha sintética. Também estava em jogo um possível apoio à causa anglo-francesa. Mas, apenas três meses após o ataque a Pearl Harbour- Porto das Pérolas, no Hawai, os EUA proibiam a venda de pneus. Fora da ocupação japonesa, os Aliados ainda tinham como alternativas a Índia, Ceilão, Libéria, África e América Latina" (O Povo, 21/6/1998).
2. " Antes disso acontecer,no entanto, os EUA tinham feito alguns esforços para evitar um possível desastre. Alarmados pela extensão e intensidade do conflito no Pacífico e temendo um colapso civil e militar, os EUA intensificaram o seu programa de procura e compra da borracha. A iniciativa aumentou o estoque, principalmente através de permutas com a Inglaterra. O negócio era trocar borracha crua por produtos agrícolas, como algodão. O embaixador inglês Lord Halifaz tinha motivos suficientes para satisfazer as necessidades de borracha da indústria americana" (O Povo, 21/6/1998).
3. De acordo com o jornal, "a crise da borracha atingiu a todos os Aliados. A Inglaterra tinha apenas 100 mil toneladas de estoque. O Canadá, 50 mil. A Austrália, 20 mil" (O Povo, 21/6/1998).
4. "Acordos de Washington-Sem estoques de borracha e diante de um colapso da principal matéria-prima para indústira bélica, os Estados Unidos assinaram os Acordos de Washignton com o Brasil. O objetivo era extrair da Amazonia, o maior reservatório de látex do Planeta, 100 mil toneladas de borracha por ano. Por causa disso, um plano de atração de mão-de obra foi colocado em ação. Cerca de 55 mil nordestinos foram levados pelo Governo Federal para trabalhar na floresta" (O Povo, 21/6/1998).
5. Em pauta, um curto trecho do discurso de Getúlio Vargas quando da inauguração da Campanha Nacional da Borracha: "Brasileiros! A solidariedade dos vossos sentimentos me dá a certeza prévia da vitória" (O Povo, 21/6/1998).
6. O maior fabricante de borracha durante o ano levaria 35 mil cruzeiros (O Povo, 21/6/1998).
7. São eles, os jornais Unitário (1943 e 1945) e o Correio do Ceará (1942).
8. Tal notícia foi encontrada no jornal O Povo (21/6/1998) da seguinte forma : " Em Fortaleza, onde o trabalho cresceu, o ministro João Alberto realizava missas campais para soldados e familiares. O padre Tiago Zuarthoad era o assistente eclesiástico do Semta. A benção era notíca no jornal Unitário no dia 31 de março de 1943."
9. " Em 1942, o artista plástico suíco Pierre Chabloz foi contratado pelo Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (Semta). Como chefe da Divisão de Desenhos Publicitários na Campanha Nacional da Borracha teve as seguintes tarefas: criar quatro grandes cartazes para incentivar a produção de látex. Depois, vários mapas de biotipos de nordestinos, que ajudariam na seleção dos candidatos e a decorar a publicidade dos caminhões que, periodicamente, levariam as turmas contratadas até metade do caminho" (O Povo, 21/6/1998).
10.                    "Os exames de rotina se limitavam a diagnosticar se o soldado havia ou não contraído doenças sexualmente transmissíveis. No ato da admissão, banhos e raspagem de cabelo. Os incapazes e doentes eram dispensados" (O Povo, 21/6/1998).

Referências bibliográficas
·        BENCHIMOL, Samuel. Romanceiro da Batalha da Borracha. Manaus: Impressa Nº 17. Buenos Aires, diciembre. Oficial, 1992.
·        CAVALCANTE, Maria Juraci Maia. Relatório de Pesquisa: levantamento historiográfico/fontes jornalísticas/notícias. Tese de Doutorado. Fortaleza, outubro de 1993.
·        GONÇALVES, Maria Augusta Salim. Sentir, pensar, agir- Corporeidade e educação. Campinas: Papirus, 1994.
·        O POVO, Jornal. "Em busca dos heróis da Pátria", 21/06/ 1998.
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·        FERREIRA NETO, Amarílio. A Pedagogia no Exército e na Escola: a educação física (1920-1945). Revista Motrivivência, Ano XI, Nº13, nov, 1999.
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·        VEGA, Eduardo de la. La función política del deporte: Notas para una genealogía IN: Lecturas: Educación Física y Deportes· revista digital · Año 4 ·